Você compraria um livro chamado Sobre falar merda? É bem provável que eu não tivesse chegado a me interessar, não fosse ter caído em minhas mãos outro livro do mesmo autor: Sobre a Verdade. O primeiro, nasceu de um ensaio de Harry G. Frankfurt – professor emérito de filosofia da Universidade de Princeton. Na verdade, o nome original dessa obra é On Bullshit. O segundo livro remete-se ao primeiro, tendo como intenção discutir o valor e a importância da verdade. Minha intenção, neste texto, é focar em alguns poucos excertos da primeira obra para refletirmos um pouco.
On Bullshit chegou a vender mais de 400 mil exemplares e foi traduzido em cerca de 25 línguas. Acredito que muitas vendas aconteceram por curiosidade de pretensos leitores quanto ao título da obra. Realmente não faço ideia se todos os exemplares foram realmente lidos e valorizados como deveriam, pois Frankfurt é primoroso em suas argumentações, seja por lançar mão de pensadores importantes como Ludwig Wittgenstein, seja por contar com uma dialogicidade tão amigável.
Para Frankfurt, falar besteiras é inerente à nossa cultura contemporânea. O que lhe deixa estupefato é que tal fenômeno não tenha ainda despertado preocupações ou interesses suficientes para análises experimentais ou exploratórias. É isso que ele se propõe a fazer em On Bullshit.
Não vou considerar seus usos e abusos retóricos. Meu objetivo é apenas fornecer uma descrição aproximada do que é falar merda e do que não é – ou (em outros termos) articular, de uma forma mais ou menos resumida, a estrutura desse conceito. (FRANKFURT, 2005, s/p)
O termo bullshit é uma gíria muito usada pelos norte-americanos para acusar alguém de estar querendo passar o “conto do vigário”. No Brasil mesmo, é usual virar-se para um falador falastrão e cortá-lo com um belo: “bullshit !” Quem fala bullshit não deveria receber atenção nem crédito. É por essa linha que Frankfurt caminha rumo a demonstrar o que é falar baboseiras. Ao iniciar sua proposta, o autor ressalta que seus estudos a respeito do assunto não envolvem pesquisas em outras línguas que não seja o inglês. De qualquer forma, creio que suas ideias são totalmente compreensíveis mesmo traduzidas para o português.
Frankfurt foi beber, primeiramente, do Dicionário Inglês de Oxford (Oxford English Dictionary – OED) e chegou a dois verbetes: “falação de merda” (nos volumes suplementares) e “falação” (quanto a seus vários usos). Além dessa fonte, também considerou um ensaio de Max Black (filósofo da linha analítica) cujo título é: The Prevalence of Humbug (A predominância da impostura). Frankfurt explica:
Não estou seguro quanto à proximidade de significado entre a palavra impostura e a expressão falar merda. É claro que essas palavras não são completa e livremente intercambiáveis; são com certeza usadas de formas diferentes. Porém, essa diferença parece ter, no todo, mais a ver com questões de boas maneiras, e com alguns outros parâmetros retóricos, do que com as formas estritamente literais de significado nas quais estou interessado. É mais educado, e menos pesado, dizer “impostura” do que “merda”. No caso desta discussão, vou supor que não há nenhuma outra diferença importante entre os dois termos. (2005, s/p)
Chega a ser engraçada a mistura entre a formação acadêmica de Frankfurt e o uso do baixo calão. Até porque a tal “falação de merda”, investigada pelo autor, toma praticamente um caráter técnico de linguagem. Talvez, o termo bullshit seja menos ofensivo aos ouvidos mais pudicos. Assim, o autor disseca a definição de Black para “impostura” e chega à conclusão de que ela não apreende “[…] de modo adequado ou com precisão o caráter essencial do falar merda” (FRANKFURT, 2005, s/p)
Então, o autor de On Bullshit parte para buscar auxílio nos pensamentos de Wittgenstein:
Nos tempos antigos da arte
Os construtores com todo cuidado trabalhavam
Cada minúscula e invisível parte,
Pois os deuses em todo lugar se encontravam.
(WITTGENSTEIN, apud FRANKFURT, 2005, s/p)
Diante dos versos, Frankfurt elogia os profissionais de antigamente: eles não poupavam trabalho; tinham cuidado com os mínimos aspectos de sua labuta, não relaxando de seu esmerado fazer. “Dessa forma, não se varria nada para baixo do tapete. Ou, pode-se também dizer, não se fazia merda” (FRANKFURT, 2005, s/p)
Um dos trechos mais interessantes do livro On Bullshit é a narração de um encontro de Wittgenstein com Fania Pascal (filósofa francesa, 1934-1994). Na verdade, interessante não é o trecho em si, mas as reflexões que Frankfurt propõe a partir do relato feito pela própria filósofa:
Fiz uma operação para retirar as amígdalas e estava na Casa de Enfermagem Evelyn, sentindo-me triste. Wittgenstein fez-me uma visita. Eu resmunguei “Sinto-me como um cachorro atropelado.” Ele ficou contrariado: “Você não sabe como um cachorro atropelado se sente”. (PASCAL, apud FRANKFURT, 2005, s/p)
À primeira vista, parece que “aquele Wittgenstein de Pascal”, além de ter sido desagradável, demonstrou total inflexibilidade e insensibilidade para aceitar uma piada de alguém hospitalizada que só estava tentando melhorar a situação. Só que, Frankfurt consegue extrair desse relato algumas pressuposições, no mínimo, pertinentes: talvez, “aquele Wittgenstein de Pascal” não pretendesse acusá-la de estar mentindo, mas de estar deturpando a realidade; a afirmação dela não estaria ligada à iniciativa de descrever a realidade, mas simplesmente à descrição de seu mal-estar, inventando uma comparação irracional (como ela poderia saber o que realmente um cachorro atropelado sente?). “Para o Wittgenstein da história de Pascal, a julgar por sua resposta, isso é falar merda” (FRANKFURT, 2005, s/p)
Talvez, a implicância do “Wittgenstein de Pascal” não tenha se dado pela falta de exatidão da filósofa na descrição de como se sente. A implicância pode ter acontecido porque Pascal ofereceu uma descrição de um estado de coisas “sem se submeter às restrições que a tentativa de fornecer uma representação precisa da realidade impõe”(FRANKFURT, 2005, s/p). Seu erro não foi não ter conseguido entender as coisas, mas não ter ao menos tentado fazê-lo.
Particularmente, eu até acho que o exemplo do encontro entre Wittgenstein e Pascoal é bastante exagerado, mas nem por isso ele deixa de ser bastante didático. Se imaginássemos que a informação de Pascal, a respeito de como estava se sentindo, fosse crucial para Wittgenstein, a sua total falta de preocupação com a verdade, ao se comparar a um cachorro atropelado, teria sido a essência do “falar merda”.
Para Frankfurt, a indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são é a origem da “falação de merda”. E quanto a isso, temos que admitir: se há tempos atrás (pouco, na verdade), a censura calava qualquer manifestação privada ou pública, em nossos tempos atuais, a internet abre todas as tramelas para as mais variadas “falações de merda”. Haveria “meias medidas” para esse impasse? Como calar as “falações de merda”? Quais critérios seriam utilizáveis? Onde estaria a divisa entre a censura e o não se deixar falar “bullshit”? Quem teria a tutela para determinar o que é um e o que é outro?
É claro que a obra de Frankfurt, apesar de bem curta, é também densa e ele desenvolve primorosamente suas ideias. De qualquer forma, não é confrariando em um único texto que vamos conseguir explorar o On Bullshit. Por isso, pretendo dar continuidade a essas reflexões. Que tal? Posso contar com você? Participe: leia e comente!
Oi Carla. Eu acho que essa questão de falar merda seja bem particular e não, necessariamente, uma palavra de baixo calão. Pode ser, simplesmente, a representação em uma palavra de uma grande besteira que foi falada, sem o sentido esperado para a pessoa que ouve. Não acho que falar bullshit para alguém seja gentil e me peguei pensando se Jesus, Buda, Chico, Madre Teresa, o Papa, falariam algo parecido. Imagina um professor ou alguém numa reunião de trabalho falar: - Não, me desculpe, mas isso que vc falou é uma merda! Seria honesto, mas produtivo, necessário? Pensei tbm no seguinte, como temos merda de dentro de nós, às vezes, não é bom poder colocar ela para fora, ainda mais vendo-as nos outros e não em nós? Um bj e ótimo dia!
Alôu, meu eterno Caríssimo Jaylei! Da prática do bullshit, podemos tirar incríveis reflexões, não é mesmo? Há muitas facetas a serem consideradas. O que é bullshit pra uns pode não ser para outros. De qualquer forma, o autor Frankfurt procura chegar a um conceito único. Em meu texto de ontem, voltei ao tema e trouxe mais uma situação para refletirmos. Abraço gigante pra você!
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