Desejo é uma força poderosa. Impõe a nós determinações imperiais. De fato, podemos nos apaixonar por qualquer coisa, ou por alguém, desde que se tenha tempo para se ler, para se assistir, para se mirar. Pior se for um algo proibido, nada definido, algo de se envergonhar, quando, na verdade, não é preciso ter pudor de certas coisas. Um pudor semelhante ao dos anatomistas de eras passadas, quando abrir o corpo era aviltá-lo. Era preciso evitar realizar o escrutínio. Ainda assim, nesse mesmo ato, havia a intenção de se entender, de salvar – a si mesmo, a outrem. Esse exercício torna-se vão, quando parece cada vez mais nos aproximar daquilo que evitamos. Para os marinheiros, basta um olhar sobre um ponto cego na linha do horizonte, para que se percam todas as referências, o senso de orientação e os sentidos, e a nau, portanto, é perdida. Esse é o momento quando as coisas ficam mais interessantes.
É assim mesmo: andar a esmo é um se perder e um se revelar ao mesmo tempo. Foi o que senti quando, em janeiro de 2013, em um desses acasos que nos traça o desejo. Na época, já me sabia pai de um menino – sem que ninguém tenha me dito isso, nem um exame, o que seja. Então quando me vi só, após uma tarefa extenuante e demorada em São Paulo, longe de todos, saí sozinho para aproveitar meu último dia na cidade para ir à Pinacoteca. Evadia. Era uma tarde atipicamente amena para o mês de janeiro, apesar da proximidade da Canícula. Ao andar pelos corredores do museu, é evidente que me impressionou todo conjunto de obras, a organização do local, a possibilidade de passear pelas obras sem preocupação, e demorar-me em uma obra e outra. Na verdade, do passeio todo, lembro-me de muito pouco, realmente. Sem a ajuda das fotos que pude tirar, não conseguiria reter quase memória do que vi. Também não pude reter os rostos de quaisquer pessoas que estivessem percorrendo os corredores, e havia muitas: casais, famílias e um ou outro transeunte, como eu.
De tudo, somente uma única lembrança se reteve. Ao percorrer a ala do acervo permanente, impressionou-me encontrar uma figura singular. Uma mulher. Para um homem, uma figura singular é sempre uma mulher. Por que procurar confusão? Devia não olhar, mas isso já é em si fazê-lo. E o que vejo? O cabelo levemente luminoso, curto, à altura da base do pescoço. A franja prestes a lhe cair sobre o olho direito, e o esquerdo também, se continuasse com o Sol a lhe iluminar todo o semblante, o que era estranho, já que estávamos em um local fechado. Olhava ao longe, em íris azulada, para o alto e para o lado. Isso fazia com que expusesse ainda mais o pescoço e o colo, alvos. Sobre os ombros e os braços, e fechado pelos dedo da mão direita, em pinça sem esforço, como um cálice translúcido, envolvia-lhe aquela miríade de cores que era o xale, que podia ser verde, ou mais azul, com flores feito flamboyants. O pulso em descanso no regaço.
Fiquei a mirá-la não sei quanto tempo. Ela nem reparava que estava olhando fixamente a ela, tal como estava, estática, como que capturada pela vista que deslumbrava. Ou então ela sabia que estava a mirá-la, e então evitava cruzar olhares, de propósito. Era aquele jogo lindo, de encontro e desencontro, que tão sonhamos viver entre apaixonados? Sabe aquela espectativa para antes de se olhar diretamente para alguém. Será? Na verdade, foi somente uma forte impressão minha. Deixei-me perder, que era o que mais queria. Parecia a fotografia vívida de um instante, fosse imagem surpreendida quando estamos dentro de um veículo e a passagem do cenário pela janela emoldura toda a realidade. Prefiro imaginar que um dos dois – ela ou eu – estivesse em movimento e o outro parava o caminho de seu olhar assim que a cena ficasse enquadrada pela moldura de uma janela ideal.
Não sei com que forças sai dali, pelo impacto do encontro. Fui ao café do museu, para me refazer. No fundo, covarde, fugia. Mas o desejo aumenta quando há ausência. Dizia Proust, que não seria a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças? Depois de um tempo, retornei à sala. Ela ainda estava lá, perdida em olhar.
Precisava dizer que estava ali, de alguma forma. Então notei o caderno capa-dura em cima de uma bancada, na sala ao lado. Era a ata de assinaturas dos visitantes, transformada em registros pessoais, de outros visitantes, que também queriam se saber ali, em algum momento. O tempo esvaindo-se, uma preocupação de não ser notado da mesma maneira, nunca mais. Conferindo os escritos de outras pessoas. Ninguém a mencionava. Tolos. Deixei o meu escrito em forma de pedido de perdão, por abandoná-la. Quem saber, seria lido? “Mulher menina do xale verde, difícil evitar seus olhos. Prometo retornar, um dia”.
O passeio terminou ali. Como se a ressaca tivesse trazido pela maresia, após o vendaval, entre ondas. Náufrago, não sei como fui embora. Talvez nunca tenha ido.
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Quadro: Mulher do xale verde. Woman’s green shawl. Boulet, Cyprien Eugène. Cera e óleo sobre tela | (sem data). Pinacoteca do Estado de São Paulo | São Paulo – Brasil. Dimensões da obra: 81,3 X 60,3 cm. Disponível em: http://warburg.chaa-unicamp.com.br/obras/view/1253. Acesso em: 14 jun. 2017.
Texto lindo, Guilherme. Me lembrou Cortázar, em suas boas histórias...
Caro Sérgio, sabe que adoro Cortázar? "História de Cronópios e Famas" e "O jogo de amarelinha" são meus preferidos. Muito obrigado! Abraço!