O biólogo inglês Bill Hamilton (1936-2000) foi um dos grandes pesquisadores da Teoria da Evolução no século XX. Suas pesquisas não só comprovam as teorias de Darwin, mas expandem o conhecimento que delas temos. Foi Hamilton quem propôs que o comportamento de um determinado ser que auxilia na transmissão de um gene para a próxima geração não ocorre porque esse comportamento beneficia o indivíduo — como o senso comum nos leva a pensar — mas sim se esse comportamento beneficia o gene em si.
Expandindo sobre as pesquisas de Hamilton, o geneticista Richard Dawkins publicou, em 1976, sua obra maior, O Gene Egoísta, em que explora e explica didaticamente esse conceito. Talvez esse não seja o livro ideal para presentear aquela(e) amiga(o) mais religiosa(o), mas fora isso, é um livro fora de série, talvez um dos mais importantes do século XX.
Pois bem, sabe quem gostou muito desse conceito de que é o gene —ou, generalizando, o código genético — que está no comando da evolução da vida? O Google.
O gigante do Vale do Silício criou um vídeo em 2016, para uso estritamente interno, que vazou recentemente e vem recebendo atenção por parte de certa porção da mídia que reporta assuntos de tecnologia. O vídeo é bem feito, interessante, e até mesmo relaxante, com música e texto bem agradáveis. Mas quando se passa pelo seu design quase zen, o que se vê por baixo é uma possibilidade das mais arrepiantes e potencialmente avassaladoras que uma empresa já cogitou na História da Humanidade.
De acordo com o vídeo, os dados que geramos são como os genes, e o conjunto de todos os nossos dados são o equivalente de um código genético. Diferentemente da visão Darwiniana, porém, a visão do Google é mais Lamarckiana. Pela teoria de Lamarck — cinquenta anos anterior à de Darwin, mas errada em seu modelo biológico — o indivíduo muda sua carga genética ao longo da vida e passa à geração seguinte. A essa junção do egoísmo do gene Darwinista com a evolução intra-ser Lamarckiana, aplicada ao nosso registro de dados (compreendendo todos os dados que geramos ao longo da vida), gera a ideia central do livro: a ideia do “registro egoísta”.
Nossos dados, segundo o Google, evoluem ao longo da vida, à medida que mudamos nossos hábitos, aprendemos coisas novas, nos adaptamos às transformações sociais. É interessante entender que essa hipótese Lamarckianana — só quando aplicada aos nossos dados, e nunca aos nossos genes, que fique claro — existe e serve como um bom modelo para pensarmos em como a qualidade de nossos dados se modificam com o passar do tempo.
O quadro começa a ficar mais complicado quando o narrador do vídeo faz um paralelo entre nossos dados e nossos genes, levantando a possibilidade de que da mesma maneira que nossos genes são senhores de nossa evolução, nossos dados podem ser senhores da evolução social. Nesse sentido, não seríamos os donos de nossos dados, mas simplesmente seus guardiões. Geramos dados, melhoramos (ou alteramos) a qualidade destes ao longo da vida, e os transmitimos para as gerações posteriores. Mas em todo esse processo, somos apenas seus guardiões.
Até aí, tudo mais ou menos bem, apesar de um pouco estranho. A coisa começa a dar frio na espinha quando o narrador cogita a possibilidade de esses dados serem usados para “o bem comum”, para “melhorar a sociedade”. E quem melhor para usar esses dados nesse sentido? Vou dar uma dica: começa com “Goo” e termina com “gle”.
Sim, o experimento mental (que é como o Google chama esse vídeo) postula que a empresa seja o impulsionador da Humanidade, formatando nosso comportamento por meio dos dados que coleta. Entendendo nosso comportamento por meio de nossos dados, o Google pode nos “guiar” para um patamar evolutivo melhor, socialmente falando.
É ou não é uma possibilidade no mínimo muito assustadora?
Que isso seja cogitado — ainda que à guisa de “experimento mental” — já é algo de espetacular. Mas que seja cogitado por uma empresa que poderia, se quisesse empreender o esforço, realizar esse intento, é algo à altura apenas das mentes mais totalitárias que nosso planeta já produziu nesses últimos 10.000 anos.
O Google diz que o vídeo é provocador por natureza, e não passa disso: uma ideia criada para dar um pontapé inicial na discussão. A empresa afirma que nenhum projeto e nenhum produto estão sendo pensados como resultado dessa ideia, mas isso não muda a questão principal: esse tipo de ideia passa pela cabeça coletiva do Google.
Antes que a gente deixe tudo isso prá lá, jogando a coisa toda na pilha das teorias da conspiração, é bom lembrar: o caminho desbravado pelas ideias incita o trânsito das ações.
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