Reza a lenda que, em um dia na década de 1930, um pai se dedicou a ensinar seu filho pequeno como tirar fotografia. Mostrou ao garoto como a câmera funcionava e deixou o filho apertar o botão, depois de tudo arrumado e configurado. Após o clique, o garoto, do alto de sua ingenuidade infantil, perguntou algo na linha de “E aí, papai? Onde está a fotografia?”. Ainda segundo a lenda, apesar da frustração de não conseguir atender ao pedido do filho de imediato — entre o clique e a foto na mão, naquela época, vários dias se passariam — , o pai viu nessa situação uma excelente oportunidade de inovação. Para nossa sorte, esse pai era Edwin Land que, em 1937, criaria a empresa Polaroid, considerada inovadora ao oferecer as fotos instantâneas aos fotógrafos, sejam amadores ou profissionais.
As fotografias tiradas com esse processo — tão comuns durante décadas que as batizamos simplesmente de “polaroides” — dispunham de um fator que seria revolucionário, e hoje é tão importante que nem pensamos nele: a instantaneidade. Pense: quando foi a última vez que você postou fisicamente uma carta no correio, mandando notícias a alguém que mora longe, aguardando dias ou semanas para obter uma resposta? Quando foi a última vez que mandou revelar uma foto? Quando foi a última vez que encomendou algo pequeno por correspondência e esperou algumas semanas para o objeto ser fabricado e remetido a você (com exceção feita a móveis, que não são nada pequenos e são produzidos sob demanda)?
Sim, instantaneidade é o que esperamos do mundo à nossa volta, inclusive dos resultados de nossas ações.
Até mesmo aqueles processos que são “longos”, geram-nos a expectativa de que não sejam assim tão longos. A Copa do Mundo, à qual somos tão afeitos (desde que não tomemos um “couro” de 7×1 da Alemanha…), é um evento “longo de curta duração”. A preparação dura 4 anos, mas então, em menos de um mês tudo está resolvido. Sete partidas (para quem fica nas 4 primeiras posições) e pronto: define-se o campeão do mundo.
Ocorre que esse imediatismo todo nos deixa não só mal-acostumados, mas também perigosamente iludidos, tornando-nos presas fáceis de quem conhece essa faceta de nossa personalidade coletiva. Esperar resultados imediatos e mesmo comemorar as primeiras consequências de nossas ações nos coloca em uma posição triste de fragilidade, inescrupulosamente explorada por aqueles que sabem esperar, que contam com nosso imediatismo, que sabem que, no mais das vezes, o esporte é uma maratona, enquanto acreditamos ingenuamente se tratar de uma prova dos 100 metros rasos.
Refiro-me, obviamente, ao processo político pelo qual passamos hoje em dia no Brasil, em especial aos desdobramentos da Lava-Jato.
Um ano atrás, vimos o desmonte do Governo Dilma e comemoramos a vitória contra a franca venezualização de nosso país, então em curso pelo governo deposto (e se você é a favor da venezualização, sugiro fortemente a leitura — ou releitura — do texto A tirania dos custos irrecuperáveis, que publiquei algumas semanas atrás). Hipocritamente não reclamamos da farsa jurídica sobre a qual essa vitória se alicerçou, e muito pelo contrário aclamamos esse equivalente ao gol de mão de Maradona na vitória da Argentina sobre a Inglaterra, na Copa de 1986. Na mesma época, vimos a operação Lava-Jato recrudescer sobre vários personagens ilustres: Cunha, Vaccari, Palocci, Bumlai e Eike se juntaram a outros pulhas governamentais nas carceragens da Polícia Federal, e alguns desses presos ilustres — os de sobrenome Odebrecht, em especial — começaram uma enxurrada de delações que comemoramos como sendo o tiro certeiro em canalhas de vários partidos, sobretudo do PSDB, do PT e do PMDB, cuja presença continuada na política nacional deveria nos encher a todos de nojo, de rejeição profunda. Aécio, Alckmin, Serra, Temer, Jucá, Calheiros, FHC, Dilma e Lula passaram a figurar como acusados na mídia, e mais uma vez comemoramos como se fosse certa a limpeza de nosso país.
O imediatismo que nos envolve fez com que a energia do assunto fosse caindo aos poucos. Para alguns, a remoção de Dilma era o suficiente, e o “Deixa o Temer trabalhar” passou a ser a palavra de ordem, como se o fato de ele estar envolvido até o pescoço nas acusações da Lava-Jato fosse um problema menor. Para outros, os ridículos posts no WhatsApp de “URGENTE: a casa caiu para Dilma” ou “Lula dá de dez em Moro” passaram a ser a catarse necessária para destilar a bile nossa de cada dia.
Ocorre que essa turma toda, sem exceção, sabe que se trata de uma maratona, e não dos 100 metros rasos. A justiça não é Usain Bolt, e eles sabem que depois dos holofotes das câmeras do noticiário, depois das perguntas desconfortáveis dos repórteres de jornal, depois das manchetes e das manifestações de rua é que as coisas de consequência acontecem. Quando já estamos esfriando, quando já estamos estafados de nossas panelas e de nossas palavras de ordem, eles entendem que é seguro agir.
É assim que, aparentemente do nada, surgem um Gilmar Mendes, um Dias Toffoli e um Lewandowski e decidem dar o que o jornalista Josias de Souza caracterizou como “um tiro de canhão na Lava-Jato”, referindo-se à soltura de Bumlai, Eike e Zé Dirceu.
Eles agiram como o maratonista experiente, que espera os oponentes se cansarem em suas carreiras insustentáveis, para no momento certo apertar o passo e deixá-los para trás. Sabem que de nada adianta acelerar nos primeiros cinco ou dez quilômetros, porque o que vale é ter fôlego para todos os 42 que compõem a corrida. E vendo seu passo ágil, passando por nós como se não fôssemos nada, desanimamos, que é exatamente o que esperam que façamos.
Jogamos a toalha ao ver-lhes a arbitrariedade, e quando fazemos isso, abrimos a porteira para que muitas outras arbitrariedades ocorram. Nosso desânimo é a deixa que eles esperam para nos mostrar que nossas “vitórias” iniciais eram apenas miragens. Era o corredor inexperiente saindo em desabalada carreira no tiro de largada. Puxa, como a gente é besta. Quando as ilusões caem, percebemos o que deveria ser óbvio: nenhum político está interessado no bem público, pois estão ocupados demais arrumando as coisas para si mesmos e tentando perpetuar-se no poder; nenhuma instituição “do povo” age pelo bem do povo, mas sim defendem agendas ocultas que em muito podem diferir do que você ou eu defendemos; todos os ministros do STF ocupam o cargo por apontamento político e devem favor a quem os apontou. E todos, sem exceção, esperam que nos cansemos da corrida para dar o bote, para por as asinhas de fora e mostrar ao que realmente vieram. Repito: puxa, como a gente é besta…
Nosso imediatismo joga contra nós, e tem sido assim faz muito tempo. Cada vez mais queremos que a mensagem no WhatsApp seja lida e respondida na hora. Um e-mail que demore mais de uma hora para ser respondido gera um telefonema de “E aí?”. Tudo tem de ser “para ontem”. Mas democracia não é assim, não funciona assim.
Democratização é um processo lento, gradual, que demanda nossa constante atenção e ação. No momento em que perdemos o interesse, que decidimos ser mais interessante comentar o capítulo da novela o comemorar o campeonato do Corinthians, eles — os nossos inimigos, que aguardam pacientemente que percamos o foco — simplesmente sorriem e atacam. Eles sabem muito bem que não temos a menor paciência, que nossas energias são limitadas, que nosso imediatismo demanda constantemente que nos dediquemos a coisas novas. “Olha, você viu a última do José Mayer? Viu quem o Flamengo está contratando? Viu que o prefeito agora está acordando às 4:30 da manhã para começar a trabalhar mais cedo ainda?”
Onde estão nossas panelas para pedir que os inquéritos contra Aécio, Alckmin, Serra e FHC tenham a mesma celeridade que pedimos para o processo do Lula? Onde estão nossas panelas para reclamar do STF que anda soltando todo mundo que a Lava-Jato prende? Onde estão nossas panelas para reclamar do Temer e de sua insistência em reformar a previdência enquanto perdoa uma dívida de 25 bilhões do Itaú?
Benzadeus, cadê a gente? Já cansamos? Já mudamos de assunto? Já abrimos a porta do galinheiro para as raposas voltarem a tomar conta? Que esperança de mudança temos o direito de nutrir diante de atitude tão deletéria?
Certo estava o Guimarães Rosa: “Povo prascóvio.”
Bom dia, Ruy. Seus textos e reflexões são bacaninhas como sempre. Tô brincando! kkkk Uma pena que tenham pouquíssimos comentários. Eu leio no trabalho, mas não posso compartilhar no Facebook, depois esqueço de acessar em casa, mas vou fazer isso hoje. Agora, ter centenas, milhares de curtidas adiantaria? Seria sinal de que os que lêem estão mais conscientes e, daqui a pouco tempo, esperaria-se um povo menos prascóvio? Não acho. Fui assistir o GregNews, do Gregório Duvivier, sobre o Judiciário e são 80 bilhões de facada no orçamento, com quase metade dos processos de presos sem ser julgado e mordomias como o auxílio-moradia que mesmo que dois juízes morem juntos não é reduzido a somente um. Na reunião do Temer de um ano de "governo" lá estava a frase inicial, projetada na parede: Um ano de coragem, trabalho e avanços. Avanços???? Se a reforma da previdência é tão boa porque não entram na mesma os políticos, judiciário e militares? Sei lá o que vai acontecer e, por enquanto, voto nulo em 2018.
Oi, Jaylei. Uma vez li que escrever poesia e esperar pelas reações das pessoas é como jogar uma pétala de flor no Grand Canyon e esperar pelo eco. Acho que algo nessa linha pode ser dito pelos meus textos. De fato, são poucos os que leem, e menos ainda os que comentam. Sem problemas, pois por mais que me agrade ver bastante leituras e discussões, eu os escrevo principalmente como catarse, como forma de não ficar com essas coisas sufocadas no peito. Meio que escrever cartas para quem já morreu e deixar sobre o túmulo: o destinatário, na verdade, é quem escreve. Concordo com você, claro: não avançamos nada nesse ano que se passou. E não é prêmio de consolação não termos regredido, é bom frisar. Mas fazer o quê, né... O jeito é continuar jogando pétalas no Grand Canyon. Quem sabe alguma delas desloca um grão de areia, que desloca uma pedrinha, que desloca um pedregulho, que desloca uma pedrona, que causa um deslizamento tectônico? Sonhar não custa, mas só é permitido sonhar com o resultado quem age — ainda que insuficientemente — no sentido de o obter. Obrigado pelo carinho!
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[…] mais tão na escuridão, e aí para frente foi ladeira abaixo. Não adiantou gritar que é uma maratona, e não uma prova de 100 metros […]