O moleque tinha a bicicleta por princípio e fim. Viajava na magrela à beira rua, cumpria promessas de cruzar terras, trilhas, continentes: o outro lado da rua, da avenida, do bairro, da cidade. Saía solto no mundo a inverter rotações, em sobressalto soluço. Dobrava a esquina sem medo, origami de risco.
Corria nas voltas os sonhos de viagem pelo sertão, movido a pernas tantas. Cavaleiro andante, cruzado em campanha, dragão envenenado. No normal, reinava na rua deserta, pois não havia a toda hora outra figura companhia, irmão de armas, sempre consigo.
Mas o passo do demo só encavala na junta de gente. Se não, por quê? Pois aparição carece de testemunha. Então tem de ter ajuntamento. E, para isso, já basta ter dois.
No dia – aquele – nada fazia. Tarde alta. Só descansava à sombra de sete-copas o corpo motor sobre o selim, na espera de outra demanda. Só que naquele dia – eis o Diá – seguia o mormaço, vontade de sorvete a esmo, até que o amigo, vizinho – outro princípio – dá ideia.
“- Vamos correr?…” diz o semiopata.
“Só que ao contrário?”, completa o quasecida.
Ganhava quem chegar primeiro, do avesso. Seguir na contramão, mesmo em uma via única. Na ponta, da esquina inversa, virar e arremeter em voo kamikaze. Pode isso?
Rodas traseira coladas, de costas, os dois se alinham. Na contagem regressiva, saem para lados opostos, sem se voltar, como os dez passos rituais de um duelo. Iniciam a corrida, desatada pedaleira, força bruta, que não muita. Só que menino voa na mão do Cujo, que soprava mais nas raias nesse dia. Ô.
Na esquina, dão a volta, recomeça a carreira. Vão chegando na marca e, cada vez mais, perto sem parar, no embate da justa, vira que revira e desvira o guidão, feito espelho avesso mesmo do jeito que figura na imagem.
“Arrega, tu, cão!”
“Não, fi duma, crente!”
E choque, chifre e voo rasante sobre o asfalto.
Tudo no chão dos dois lados. Bicicleta e menino eram uma coisa só.
Um acorda e levanta e o outro, não. Este fala desencontrado, não abre os olhos, que só na bola branca, o sangue no ouvido. Aquele, zonzo, que no vermelho sentencia a quase tragédia. Berra. Mas eis que a mãe do outro desfalecido, que antevia a cena feito oráculo, chega. Desencontra grito e vitupério.
“S’matou meu fio! Demo!”
Sai carregado o amigo, adverso, a mãozinha pendente. Não morreu – se soube. Mas dormiu. Perdeu a querela.
Rá!
Para o campeador, porém, aquele brilho do sol do dia. Carregar as magrelas, esfregar as escaras, dizer em casa que se está indo. Mas alguma coisa acontecia, mal chegou e botou as tripas. Só o turvo dos olhos. Caiu no meio da sala. Veio as mãos de veludo, a baixa voz materna
“Volta, meu filho!…”
Deu baixa no hospital o dito.
Engraçado, como no passado distante, o lado dormente não é o que morre, o que acorda já vai morrer. A justa espada pendente pesa sempre para o lado descrente e protege o lado carente.
Deus apareceu mesmo. Que era o amigo, ficado internado só uma noite. Testemunha de Jeová, rezou fininho, saiu sorrindo, visitou o primeiro, no fim do dia – ô, dia – no belém-belém.
Para o menino os espíritos descansavam afundamento da cuca, racho na moleira, inchaço no crânio, mais a lembrança de tudo. Sobrou com o passar dos anos sabedoria.
No leito, enquanto sonhava, naqueles dias, ele – o menino, a bicicleta, a vida – voltava a ser uma coisa só.
Assim como eu a paixão pela magrela e o sonho de peregrino contínua nesse menino. Porém outras paixões nos puxam, nos conquistam e adiamos. Me lembra Paul Theroux....
Verdade! Obrigado, pai, por continuar seguindo na leitura dos textos! Abraço!