Vamos a mais um dilema, esse, bem cheiroso…
Lauro era presente. Conhecido por seu recato e atendimento aos prazos, era muito diligente, ágil, solícito, disponível, pontual. Uma pessoa de reputação inabalável. Um colega sempre à postos para ajudar. Um cara divertido no ponto certo e sério quando preciso. Enfim, o Lauro era legal, concordemos. Um colaborador bem inserido no esquema da empresa, saneando as contas e os investimentos. Os passivos e os ativos. Conhecia o serviço, que entregava bonito e limpinho. Assim brincavam os colegas. “Faz tempo que você está na firma, Lauro”. Não havia nada que podíamos dizer sobre Lauro. Bom, dizer que nada o desabonava é muito forte. Tem uma coisa que Lauro sempre fazia e escondia dos colegas. Algo de que não se orgulhava. Um quê de chocante, para a qual se esforçava muito para esconder. O que ele fazia era espalhar partes de si por todos os lados da empresa. Literalmente. Cílios. Unhas dos pés e das mãos. Fios de cabelo. Ranho de nariz. Cera de ouvido. Caspa. Pentelhos até. Outras coisas mais, vai se saber. Começou com uma brincadeira meio delinquente, uma vez ou outra, para punir um colega mal-intencionado, ou o chefe tosco. Mas o vilipêndio virou compulsão para os momentos tensos. Assim, escolhia uma vítima e passava a mão geral nos objetos da pessoa que era o seu desafeto do momento. Era a sua vingança silenciosa. Quando achava ensejo, enfiava o dedo no nariz e deslizava-o pelas paredes, nas maçanetas, nas cadeiras, nas mesas (em cima e embaixo). É o que sabemos até agora. Não queria que fosse descoberto, já que seu asseio e reputação eram impecáveis até o conhecimento dos fatos, como já o dissemos. A camisa, nunca amarfanhada. O cabelo e a barba, tosados simetricamente. Mas o caso – e que caso temos – era que Lauro, um dia, foi descuidado. Estava estressado. E foi pego pela câmera de monitoramento, cuspindo na mão e passando sobre o telefone do colega da mesa ao lado. Afinal, para isso ela está lá, para olhar, vigiar e punir, não é mesmo? Foi chamado pelo gestor um dia depois. Achava Lauro que o motivo eram alinhamentos de projetos, quando foi surpreendido pela presença do gestor, do RH, do enfermeiro do Setor Médico, do segurança. Quando ficou sabendo o motivo, ficou parado, estático. Não reagia. O gestor perguntava o motivo do fato. Queria uma resposta. O que, Lauro, presto, faria?
Desenredo. Você, leitor, leitora, pode julgá-lo de seu pedestal. Isso é fácil. Difícil é realmente se imiscuir nas tramas do drama humano. Ora, pois sim. Lauro a nada respondeu. Permaneceu em silêncio impassível. Bloqueou a realidade que se fazia necessária enfrentar diante de seus olhos. Odiava o trabalho, as pessoas, o lugar, o salário, o esquema, a higiene. Não queria responder à pergunta elementar nesse dilema: por que fazia aquilo? Em total ato de negação para consigo mesmo, na verdade, tramava o derradeiro ato de vandalismo. Pediu licença para ir ao banheiro, pelo que foi acompanhado pelo segurança. Ao entrar no box, usou de todo o cuidado para armazenar um conteúdo precioso e delicado, em folhas de papel. Quando saiu do banheiro, aproveitou a distração do leão-de-chácara, que paquerava a faxineira. Voltou à sala. Comunicou sua demissão. Pegou suas coisas. Deixou a mesa muito bem organizada. Mas na saída, retirou o conteúdo do papel e, como um pincel, escreveu na parede do andar o slogan da companhia. Ficou de uma tal forma que não havia como não notar, e nada, a não ser uma nova pintura, poderia retirar a merda. Senhores, senhoras, vamos dar o nome correto a coisa toda. Dias depois, pintaram, sobrepondo a obra de Lauro com um desenho estilizado do Romero Britto. Nem se notaria o pixo, não fosse o cheiro. Seis por meia dúzia. Já Lauro sumiu até das redes sociais. Dizem que voltou a aparecer, meses depois, com cabelo diferente, assinando Mauro, morando em outro estado. Pinel. Vixe.
Rapaz, a revolta pode ser algo, de fato, silencioso e, no caso, quase invisível. Que petardo! Um abraço do Pedro.
Meninão, muito obrigado! Abraço!