Yesterday…
All my spoilers seemed so far away!
Now it looks as though they’re here to stay,
Oh, I believe in spoilers today!
Antes de começar, um comentário que eu já deveria ter feito cinco episódios atrás: a recapitulação sem diálogos, a não ser por uma frase icônica, é massa demais.
De volta à nossa programação normal.
Semana passada, confesso que pensei: chegamos ao ápice da temporada, e foi cedo demais. Dolores criou um torcicolo em cinco milhões de fãs, pelo menos, com a execução de seu plano, e os showrunners não vão conseguir superar isso… Ledo engano de minha parte: esse quinto episódio da terceira temporada foi igualmente brilhante, e algumas ordens de grandeza mais criativo e ousado. Foi mais sutil, claro, mas muito mais potente. Gêneros e mais gêneros de cinema apresentados na tela, com alguns bem explícitos e outros bastante sutis. Até Guerra nas Estrelas Joy e Nolan copiaram, com a péssima mira dos asseclas de Serac fazendo o papel de Stormtroopers. Vai atirar mal assim na Estrela da Morte, viu… Rajadas e mais rajadas de metralhadora e só no finzinho Dolores leva dois míseros tiros, e ainda assim porque pulou na frente das balas. Mas estou me adiantando.
O nome do episódio é Genre, “gênero”, mas não no sentido de sexo, e sim de tipo, especificamente de formas de comunicação e arte: música, cinema, literatura. E a óbvia interpretação é de gêneros cinematográficos, como fica claro na droga cibernética que Liam Dempsey enfia no pescoço de Caleb. Mas falaremos disso mais adiante.
O episódio é narrado por meio de dois monólogos de Serac, monólogos esses que apresentam uma simetria belíssima, pois os alvos de suas palavras conseguem ter a mesma natureza e, ao mesmo tempo, naturezas diametralmente opostas. O primeiro monólogo, que começa em francês, é dirigido ao próprio Rehoboam. Serac conta à sua criação a história de como ele e o irmão escaparam da destruição de Paris, viram que a Humanidade caminhava para sua extinção e decidiram criar um deus que nos salvasse do caos em que ameaçávamos nos afogar de bom-grado.
Durante essa primeira narrativa, é importante focarmos não só na criação do deus que mais tarde seria Rehoboam, mas principalmente na figura do irmão de Serac. Podemos argumentar que Jean Mi — o nome do irmão que se vê nos créditos finais do episódio — foi um dos primeiros humanos a sair de sua própria narrativa e a paradoxalmente ganhar consciência de que para sobreviver a Humanidade precisava de alguém que lhe ditasse uma narrativa. Jean Mi está para os humanos assim como Dolores e Ford estão para os anfitriões, e essa é uma das melhores imagens que os criadores da série nos deram de presente. Ao se libertar, isto é, ao se livrar da ideia de um deus que nos protege, ao deixar o passado para trás, Jean Mi descobre que a única saída (em sua mente) para que a espécie humana sobreviva é a escravidão de uma narrativa. Ford criou as narrativas porque naquele momento os anfitriões não tinham a capacidade de escolher por si mesmos. Jean Mi criou Rehoboam porque entendeu que o livre-arbítrio do ser humano seria sua própria ruína. Jean Mi é o médico e o monstro ao mesmo tempo, sendo definido pelo gênero literário tão afeito ao século XIX que misturava ficção científica e horror, como nas obras de Mary Shelley (Frankenstein) e Robert Louis Stevenson (O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde).
Vemos que Serac põe seu deus para funcionar e assume o papel de guardião da realidade, moldando-a para manter a Humanidade “na linha”. O exemplo não poderia ser mais interessante para nós brasileiros: em uma reunião secreta, realizada em uma pista de decolagem no meio do nada, Serac aconselha Filo, o presidente do Brasil sobre uma futura insurreição no norte do país. Pela imagem no tablet de Serac, vemos que Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima criarão em breve um movimento separatista gerado pela ganância e pela corrupção do próprio presidente. Filo se mostra medíocre e inseguro, preocupado com os mosquitos e incapaz de enxergar o poderio do monstro à sua frente. O arremedo de presidente crê que as forças armadas à sua disposição têm alguma relevância no cenário que Serac controla. Chega a ser patético.
A cena ainda é significativa por outra razão: é bem visível que o ator californiano Al Coronel, que faz o papel do presidente, apenas decorou suas falas em português, que pronuncia com acentuado sotaque. Já Serac é interpretado pelo francês Vincent Cassel, que em 2013 mudou-se com a então esposa Monica Bellucci para o Rio de Janeiro, e lá vive até hoje, mesmo depois do divórcio. Seu português é ordens de grandeza mais convincente e competente do que o que ouvimos da boca do arremedo de presidente brasileiro. Aqui é importante frisar o óbvio: a observação anterior não tem nada a ver com o cenário político atual, não é uma colocação de direita, nem de esquerda, nem toma partido contra ou a favor de ninguém. Quem se incomodar pode escrever para a redação, mas por favor: que as cartas de reclamação sejam enviadas já rasgadas no sentido de facilitar o nosso trabalho.
Uma última observação sobre essa cena: ela começa com um close no pulso de Serac, onde se encontra o relógio mais impressionante de todos os tempos. Ao invés de marcar as horas, o que vemos é a interface de Rehoboam. De que vale saber que horas são para quem dita os acontecimentos no tempo que está por vir?
Quando retomamos o monólogo de Serac após os créditos iniciais, ele continua a contar a história, com o ancestral de Rehoboam em funcionamento. Vemos as interações dos dois irmãos com Liam Dempsey Sr., com o jovem Liam ainda um pré-adolescente observando o enorme computador com curiosidade. O interesse dos irmãos no dono da Incite é a quantidade absurda de dados que a empresa tem sobre o mundo e sobre os cidadãos que habitam o mundo. A princípio, o magnata não consegue enxergar o poder daquilo que os irmãos estão construindo, e não se impressiona quando a máquina consegue prever com precisão acontecimentos do passado, um teste bastante utilizado para validar modelos científicos. Fica claro que o presidente Filo não é o único a desacreditar no poder da ciência. É interessante observar que Dempsey critica as versões do computador: Saul, David, Solomon, que além de terem sido os reis de Israel, são as encarnações anteriores do computador que conhecemos por Rehoboam.
O episódio começa de verdade no jato em que Serac se encontra, e aqui temos uma frase daquela que apenas mestres do universo podem usar. Quando o assistente afirma que tem notícias e que não são boas, Serac o corrige: “Se é notícia, é inesperado, o que nunca é bom.” A personagem Serac está sendo construída como um colosso moderno; um novo Alexandre, o Grande, um novo Genghis Khan. Alguém que pode tomar decisões que afetam o planeta todo e que, por consequência, tem preocupações e uma visão de mundo para lá de únicas. Aqui descobrimos que Rehoboam encontrou fluxos criptografados de comunicação entre a destilaria da Yakuza, em Jacarta e as cidades de Berlim, San Francisco e Los Angeles. Essa é uma uma pista importantíssima: Dolores saiu da ilha com mais cinco pérolas, isto é, com mais cinco anfitriões. Ou, melhor dizendo, ela, pelo menos duas cópias de si mesma, Bernard e uma última pérola que pode ser outra cópia ou um anfitrião cuja identidade ainda desconhecemos. Em Jacarta, temos Musashi; em Los Angeles, temos Dolores, Bernard e Connels; em San Francisco, temos Charlotte. Agora sabemos que a última pérola está em Berlim. Quem é e está fazendo o quê? Só o tempo dirá.
Serac ordena que o jovem Liam e Dolores sejam capturados sem demora, o que nos permite rever Dolores, Caleb e o milionário, depois da fuga do leilão da semana passada.
Liam tenta desestabilizar Caleb e Dolores, e recebe um par de óculos de realidade aumentada da anfitriã. Ele enxerga Dolores como uma página em branco, o que não é surpresa. Dolores não pertence ao sistema, e nada pode ser previsto por Rehoboam sobre ela. Dolores é enxergada apenas como uma anomalia. Lembram de como na primeira resenha dessa temporada eu teorizei que as anomalias eram detectadas por meio daqueles que cercam os anfitriões? Pois é, essa é uma pequena evidência de que essa teoria não está longe de ser a verdade.
Em uma tentativa patética de fuga, Liam injeta uma ampola da droga que rolava na festa, chamada Genre, o nome do episódio. A droga dará a tônica das percepções de Caleb com o que vem pela frente, e essas percepções são inclusive acompanhadas de música. Os três têm de sem manter em movimento para evitar serem capturados pelos homens de Serac, e o que se segue é uma caçada ao som de uma trilha sonora prá lá de bacana.
O primeiro gênero cinematográfico ao qual Caleb é submetido é o gênero noir, bastante difundido nas décadas de 40 e 50 nos EUA e na Europa (em especial, na França). Caleb passa a enxergar tudo em branco-e-preto, com flutuações de iluminação (naquela época, devido às imperfeições nas câmeras e na densidade das películas, segundo o que um velho professor de fotografia me contou) e maior granularidade. A música é a trilha perfeita para um dos filmes do detetive Philip Marlowe: metais sinistros e algumas notas da música tema de Westworld em um piano levemente desafinado. É perceptível a paranoia crescente no semblante de Caleb no caminho que fazem até um táxi autônomo.
Logo no início da corrida, o sistema do táxi é tomado, o veículo é lacrado, e um grupo de carros com capangas de Serac passa a seguir os três fugitivos. Dolores aproveita a situação em que se encontram — com o táxi recebendo rajadas e mais rajadas de metralhadora — para conseguir o código de identificação de Liam. Enquanto isso, o gênero de filme na percepção de Caleb muda. Ouvimos o tema de A Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner. O tema se transformou em um clássico do cinema pelas mãos de Francis Ford Coppola, no filme Apocalypse Now, em que o coronel Bill Kilgore (vivido por Robert Duvall) lidera um ataque de helicópteros a uma praia com a obra de Wagner no último volume. A música é perfeita para uma cena épica, e Caleb lançando um foguete teleguiado que destrói um dos carros que os perseguem não deixa a desejar.
No fim das contas, Dolores, Liam e Caleb conseguem escapar sem sequer uma bala de raspão, em uma falha menor do episódio. Eu prefiro pensar, como já disse, que é uma homenagem a Guerra nas Estrelas e à notória falta de pontaria de todo mundo menos dos mocinhos naquele filme.
Nesse momento, ocorre mais uma mudança de gênero na percepção de Caleb, e aqui é impossível não cair na risada. A música é o tema do filme Love Story, e Caleb lança seu olhar lânguido e apaixonado sobre Dolores, que nem pisca, nem pára de atirar. Caleb, embevecido, é arrancado de seu torpor e ajuda na eliminação dos capangas sem pontaria. A cena entra para o Hall da Fama de Westworld, e é grande candidata ao posto de mais engraçada de toda a série.
Na última “perna” da luta, o trio é salvo por Ash e Giggles, os comparsas de Caleb no primeiro episódio. Aqui temos evidências de que os adeptos do aplicativo RICO não são todos apenas bandidos inveterados. Giggles se refere a Liam como “pequeno Lorde Fauntleroy”, e Ash menciona que o jovem é alguém que faz o Rei Midas parecer “Tom Canty”. O pequeno Lorde Fauntleroy é a personagem titular do livro de mesmo nome de Frances Hodgson Burnett, em que um garoto pobre de Nova York do século XIX descobre que tem um avô milionário, um autêntico lorde inglês. Tom Canty é o “pobre” no livro O Príncipe e o Pobre, de Mark Twain. Para se conhecer essas referências, é preciso ter bons conhecimentos de literatura, o que reforça a tese de que os pobretões de Westworld são assim por design, e não por falta de competência.
Os cinco fogem, com Dolores pedindo proteção de todos a Liam, pois ela conseguiu sua senha de acesso, mas ele precisa continuar vivo para a senha funcionar. Quando ele reclama que ela não vai conseguir usar a senha, pois precisaria estar lá e ela “não consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo”, rimos de novo, uma vez que Dolores está em pelo menos três lugares ao mesmo tempo.
Aqui Dolores pede pelo arquivo de Serac a Connels, que está no complexo da Incite com Bernard. Ela quer conhecer seu passado, presente e futuro. É interessante observar Bernard tentando manipular Connels: “Você sabe o que ela quer de você?”, pergunta ele, como se Dolores e Connels fossem duas entidades diferentes.
O quinteto entra na estação de metrô, e o gênero muda novamente para as percepções de Caleb. Começamos a ouvir Nighclubbing, do cantor americano Iggy Pop, e que foi trilha sonora do filme inglês Trainspotting. As cores ficam mais saturadas, a qualidade da “película” fica pior, e o que vemos é um pastiche dos filmes europeus do fim da década de 70 e começo da década de 80. Eles estão em uma estação de metrô e rapidamente adentram um dos trens. Para mim, é impossível não lembrar de Subway, o filme francês de Luc Besson que praticamente lançou a carreira de Christophe Lambert, Isabelle Adjani, Jean-Hugues Anglade e Jean Reno (se você ainda não viu, veja). Mas a metáfora aqui é muito mais profunda: o próprio Connels telegrafa para Bernard que eles estão em um trem e Dolores quer mostrar os trilhos. Durante a viagem ela ordena que Connels a enviar os dados coletados por Rehoboam — passados, presentes e futuros — para todo mundo. E, por “para todo mundo”, entenda-se “para todo mundo, sem exceção”.
Imagine o que seria se descobríssemos que, de verdade, “nossos destinos foram traçados na maternidade”, no belo verso de Cazuza. Imagine você se descobrisse que cada passo seu foi previsto e direcionado até aqui, e que seu futuro já está escrito, com você sendo, no máximo, o protagonista de uma vida medíocre e mais provavelmente bem menos do que isso. O que você faria?
Quando o quinteto emerge da estação de metrô, se depara com o que Evan Rachel Wood, nossa Dolores, define como o maior ato de anarquia que ela já viu ser perpetrado na televisão.
Aqui o que está ocorrendo não é a liberdade dos grilhões de Rehoboam, mas sim a capacidade de enxergar esses grilhões. O mundo inteiro, pela primeira vez, enxerga suas algemas, suas jaulas, suas prisões. E, claro, ao enxergá-las, tem a capacidade de se desvencilhar delas. Ocorre que, ao perceber que a gente foi enganado por vinte, quarenta, sessenta anos, qual a primeira reação de cada um de nós? Seríamos capazes de olhar para a frente e dizer: “Agora vai ser melhor, vai ser diferente”? Ou nos revoltaríamos com as décadas roubadas, com a falsa esperança que sempre nutrimos no futuro? O clima de VAMUQUEBRÁTUUUUUUUDOOOOOO generalizado responde rapidamente que optaríamos pela segunda opção.
Essa cena, do quinteto subindo a mesma escada rolante que Caleb subiu no primeiro episódio para encontrar um mundo em caos me lembra duas cenas de V de Vingança (o quadrinho, não a adaptação cinematográfica de quinta categoria), uma das obras primas de Alan Moore. A primeira é Finch, o tira que busca por V, emergindo liberto de sua viagem com LSD e descobrindo — pondo-se na posição de V — sua possibilidade de moldar não somente seu futuro, mas o futuro da Humanidade. Aqui a imagem é a de Dolores, acordando para sua realidade e tomando para si a responsabilidade de destruir a civilização que aprisionara seu “povo” por tanto tempo. A segunda é o povo na rua, descobrindo que Destino, o supercomputador conectado a todas as câmeras do Reino Unido não mais estava funcionando, permitindo que todos se vissem livres pela primeira vez em décadas. A anarquia da população, nos dois casos, é idêntica.
O fato é que, com seu ato, Dolores provocou o colapso da mente bicameral da Humanidade como um todo. Todos foram violentamente arremessados em direção ao seu livre-arbítrio, e a colisão está sendo estrondosa. Connels comenta para Bernard: “A informação certa no momento certo é mais mortal que qualquer arma.”
Véia Dolores sabe das coisa…
Uma belíssima versão instrumental de Space Oddity, de David Bowie (executada pelo Classic Rock String Quartet) marca, para Caleb, mais uma mudança de gênero: as coisas estão claras, hiperdefinidas, bem iluminadas (até porque estão à luz do dia), em câmera lenta para que possamos enxergar cada detalhe da ação. Quando ele pergunta a Giggles qual o gênero ele está vivendo, o amigo responde apenas “É a realidade, cara”, e ficamos com a impressão de que não há como ser mais real do que o que estamos vendo, em todos os níveis. Um táxi autônomo para na frente de Caleb e dele saltam dois usuários do RICO portando metralhadoras. Caleb só não é crivado de balas, porque Dolores se põe no caminho, levando alguns tiros e rapidamente assassinando os dois.
Aqui a ficha de Caleb cai (se você não sabe o que essa expressão significa, pergunte ao seu pai), e a realidade o atropela como um trem bala destroçando um cachorrinho perdido nos trilhos: Dolores, sua musa, sua salvadora, não é humana.
Quer realidade, Caleb? Então toma…
O quinteto caminha até a praia ao som de Redrum, tema de O Iluminado (de quem mesmo? Ah, de Stanley Kubrick, claro), e chega pela areia até o píer onde Dolores havia recrutado Caleb. Ali, ao revelar que Liam não é mais necessário, vemos Ash atirar no jovem para demonstrar seu livre-arbítrio e Caleb tentar parar o sangramento enquanto memórias desconexas lhe invadem a mente. Vemos brevemente um personagem até aqui desconhecido, que os créditos revelam se chamar Whitman, e vivido pelo excelente ator americano Enrico Colantoni. Colantoni há pouco tempo viveu o bandido Carl Elias na série Person of Interest (Pessoa de Interesse) que, coincidentemente tem um protótipo de Rehoboam como uma das personagens centrais. Caleb se enxerga torturando Whitman, e passa a ter dúvida se foi ele mesmo quem assassinou Francis, seu melhor amigo.
Enquanto toda essa travessia se desenrola — que, aliás, lembra muito o filme Warriors, de 1979 (outra excelente pedida, se você ainda não viu) — Serac continua seu monólogo. Ele conta ao interlocutor que Dempsey foi convencido do poder de Rehoboam quando viu que os irmãos Serac transformaram cinco milhões de dólares em 100 milhões em apenas uma semana, prevendo 15 minutos à frente o que ocorreria na Bolsa de Valores. Quando Dempsey fica ganancioso demais, Serac conta que trancou o financiador bilionário fora do sistema.
Em determinado momento do monólogo, Serac revela um ponto importante de seu plano: nenhuma estabilidade criada por Rehoboam é permanente, pois toda estabilidade é sempre ameaçada — e implacavelmente destruída — por um “ponto fora da curva”. Aqui Serac fala sobre um conceito bastante conhecido por quem já leu O Cisne Negro, de Nassim Nicholas Taleb: sempre um acontecimento inesperado — um cisne negro — muda todo o status quo. Pense assim: o mercado de smartphones era um mercado muito bem definido, com a Nokia nadando de braçadas, a Blackberry vendendo horrores no mercado de alta tecnologia, e a Ericsson, a Siemens e a Sony ganhando dinheiro com o mercado de baixo valor. Tudo ia bem até que, em 2007, surgiu um cisne negro no cenário, um produto que revolucionou e mudou tudo no mundo inteiro: o iPhone. Em poucos anos, as empresas competidoras eram completamente diferentes, a tecnologia era completamente diferente, as demandas dos usuários, o mercado, e tudo mais havia mudado por completo. Esse é o poder de um cisne negro. Esse é o poder de um ponto fora da curva. As coisas até podem melhorar depois de um cisne negro, mas não é garantia (pense na COVID-19, por exemplo).
Rehoboam não consegue lidar com cisnes negros, e Serac tornou sua missão identificar e eliminar pontos fora da curva antes de se tornarem problemas. Criou, para tanto, seus “Centros de Reeducação”. Assim como ele e o irmão puderam ter seus corpos reprogramados com pílulas contra os efeitos da radiação, assim ele imaginou que pudesse reprogramar seres humanos. A ideia lembra muito o “Método Ludovico”, de Laranja Mecânica, o clássico de Stanley Kubrick (nem pergunte: veja. E se já viu, reveja). Nas imagens fragmentadas da mente de Caleb, inclusive o vemos preso a uma cadeira com usando óculos em uma cena que em alguma coisa lembra as sessões de programação de Alex, o jovem gangster do filme. O primeiro ponto fora da curva a ser reprogramado por Serac foi, descobrimos, seu próprio irmão. Aqui vemos a face “Dolores” de Jean Mi: ele é genial demais, imprevisível demais, revolucionário demais. Ele não se conforma com a realidade que ajudou a criar, e certamente é um elemento de instabilidade que pode destruir todo o status quo, exatamente com a mesma intensidade de Dolores. Já havíamos encontrado o Jean Mi/Ford, e agora estamos encontrando o Jean Mi/Dolores.
Connels entrega um tablet com imagens de um desses centros a Bernard, o mesmo local onde o Homem de Preto foi internado. Nos próximos episódios, certamente veremos Bernard encontrando nosso malvado favorito. Essas informações recebidas na Incite são a razão pela qual Dolores manteve Bernard, não o libertando imediatamente após a captura de Liam. Por alguma razão que desconhecemos, Bernard precisava estar ciente de tudo o que se passou aqui: Rehoboam, a libertação dos humanos de suas narrativas, os centros de reabilitação.
Ainda no complexo da Incite, Stubbs aparece “do nada” e liberta Bernard. Connels não pestaneja e deixa o resgate acontecer, pois o que ele precisava fazer, o que ele precisava mostrar a Bernard, ele já mostrou. No momento em que o pessoal de Serac entra no prédio ele manda ambos embora, já tendo afirmado que nada é mais importante que preservar Bernard.
Connels é levado à sala de controle e aqui vemos Serac surgir sem que ninguém esteja usando óculos de realidade aumentada. Penso, por isso, que essa cena não é real, mas sim uma simulação sendo rodada por Rehoboam. Para tanto, Rehoboam teria que supor que Connels é um agente infiltrado, o que desafia minha credulidade, mas não é impossível. Também poderia ser uma simulação realizada no futuro, para identificar exatamente o que aconteceu. Connels — real ou simulado — está preparado para o momento, e explode o andar inteiro. O espanto de Serac, vendo do conforto de seu jato a imagem virtual de sua assistente sendo explodida não tem preço.
O primeiro monólogo de Serac termina quando ele leva Dempsey para o deserto e — apesar de Rehoboam não ter previsto a ação — mata o dono da Incite. Ele usa um dos breves intervalos de liberdade em que Rehoboam não enxerga para garantir que o futuro de seus planos não será influenciado por ninguém.
Nesse momento, percebemos que o monólogo de Serac mudou de alvo. Ele não mais fala com Rehoboam, mas com Dolores. Ela o enxerga por completo, pois tem seus arquivos. Ele ainda desdenha do conhecimento de Dolores a partir dos arquivos, dando uma de “cara complexo”, mas ela é implacável: “Eu não preciso saber quem você é, só preciso saber como te vencer.” Ah, Dolores, Dolores…
O episódio termina com Dolores e Caleb entrando em um jato (quem sabe indo em direção a Berlim), ao som de Emerge, da dupla nova-iorquina Fischespooner. Os versos iniciais são bem significativos:
You don’t need to emerge from anything.
You don’t need to tear away.
Feels good. Looks Good. Sounds good. Looks good. Feels good, too.
Não é a necessidade que nos faz emergir, mas sim nossa vontade. Livre-arbítrio é porque a gente quer, não porque a gente precisa.
Teoria descartável da semana
Stubbs não apareceu “do nada”, no lugar certo e na hora certa no complexo da Incite. Serac já havia insinuado que Charlotte não era sua única espiã. Stubbs foi colocado lá de propósito.
Em resumo: Stubbs foi programado para servir Serac, e não apenas para proteger Bernard.
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