I can’t believe the spoilers today. I can’t close my eyes and make the spoilers go away. Spoilers, bloody spoilers! Spoilers, bloody spoilers!
Outra semana, outro plot twist de dar torcicolo em girafa. Sabe aquele segredo que eu previ que iria durar a temporada inteira, sobre a identidade de qual anfitrião habita o corpo de Charlotte? Então, a menos que a temporada tenha acabado agora e ninguém percebeu, aquela revelação veio. Veio, aliás, mais rápido que o avanço exponencial da COVID-19 pelo mundo. A maior surpresa do episódio foi, diga-se de passagem, a quantidade de surpresas reveladas.
O título desse quarto episódio da terceira temporada é The Mother of Exiles, uma referência explícita à Estátua da Liberdade. A expressão é, na verdade, parte de um verso do poema O Novo Colosso, de autoria da poetisa norte-americana Emma Lazarus, em 1883. O poema foi composto para um leilão, cujo objetivo era angariar fundos para a construção do pedestal da Estátua da Liberdade:
O Novo Colosso
Não é como o gigante orgulhoso da fama grega,
Com membros conquistadores montados de terra a terra;
Aqui em nossos portões do pôr do sol, lavados pelo mar, estará
Uma mulher poderosa com uma tocha, cuja chama
É o raio aprisionado, e o nome dela
Mãe dos exilados. Do seu farol
Brilha em todo o mundo; seus olhos suaves comandam
O porto com ponte que as cidades gêmeas moldam.
“Guardem para vocês, terras antigas, sua pompa estragada!” ela grita
Com lábios silenciosos. “Me deem seus cansados, seus pobres,
Suas massas amontoadas ansiando por respirar livres,
O lixo miserável de suas praias fervilhantes.
Envie-os, os sem-teto, relegados à tempestade, para mim,
Eu levanto minha lâmpada ao lado da porta dourada! “
O poema de Lazarus hoje, entalhado em pedra, fica permanentemente exposto na base do pedestal da estátua, e durante mais de um século tem sido o símbolo de boas-vindas dos imigrantes ao Estados Unidos. Bem, pelo menos até 2016, quando a presidência de Donald Trump passou a antagonizar imigrantes e modificar profundamente a política de imigração note-americana.
O poema se refere ao novo “colosso”, a Estátua da Liberdade, e faz referência explícita ao “Colosso de Rodes”, a enorme estátua de Alexandre o Grande, erguida à entrada do porto de Rodes, na Grécia. A estátua era uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Diferente da imponente estátua de Alexandre, a Estátua da Liberdade se posta como um novo colosso, um ideal mais nobre de liberdade voltado aos necessitados, ao invés da pujança imperial de seu equivalente do mundo antigo.
Veremos, nesse episódio que há várias interpretações possíveis para a expressão “Mãe dos Exilados”, algumas mais explícitas, outras provavelmente resultado apenas dos devaneios da mente desse que vos escreve.
Contudo, nenhuma interpretação de “Mãe dos Exilados” é mais explícita do que Dolores, que é — em vários sentidos — o cerne do episódio e de toda a série. Descobrimos que quem habita o corpo de Charlotte não é Teddy, Clementine, Abernathy, Wyatt, Caleb ou qualquer outro dos que foram aventados pela maioria de nós, fãs (e parabéns para a meia dúzia de fãs sagazes que previram o que se revelou verdadeiro). Charlotte é, na verdade, Dolores. Aliás, não só Charlotte: Connels (o assistente de Liam), e Musashi (posando de chefe da Yakuza) são todos cópias de Dolores. Todas as quatro pérolas que a anfitriã escamoteou para fora da ilha, com exceção da pérola de Bernard, são cópias dela mesma. “Se você quiser que algo seja bem feito, faça você mesma”, ela diz ao Homem de Preto.
Dolores como a “Mãe dos Exilados” também pode ser vista como uma alusão a Daenerys, de Game of Thrones, a “Mãe dos Dragões”. Dolores e Daenerys já foram comparadas em inúmeros memes pela Internet afora, claro. No contexto de que Daenerys fez crescer enormemente seu poder ao longo da série, vemos agora Dolores realizando proeza semelhante, não por meio de dragões e exércitos, mas sim da multiplicação de si mesma. No episódio, vimos que ela antecipou todas as movimentações de seus oponentes, Serac, Bernard e Maeve e se manteve à frente deles, terminando o episódio em posição de franca superioridade. Roubou todo o dinheiro de Liam; conseguiu confinar o Homem de Preto, removendo-o como possível obstáculo aos seus planos; colocou-se em posição para neutralizar o ataque de Serac à Delos; neutralizou — ainda que só temporariamente — a ameaça de Maeve; aprisionou — mas ainda não sabemos por quê — Bernard. Ou seja, nesse episódio, Dolores mostrou a que veio, e não deixou dúvidas: não lhe faltam cartas na manga para atingir seus objetivos.
Na jornada de Dolores, o episódio nos traz, primeiramente, um velho amigo de volta: o Homem de Preto. Alucinando horrores depois de ter matado sua filha, Emily (no nono episódio da segunda temporada). Ele alucina a presença de da filha, e o “diálogo” que tem com ela expressa com clareza seus maiores medos: ter agido por livre-arbítrio e ter matado a filha; ter agido mecanicamente, e não ser livre; não ser quem ele pensa que é, isto é, um ser humano, mas sim uma máquina. No ápice de seu inferno interior, ele só é impedido de cortar os próprios pulsos pela chegada de Charlotte.
Aqui temos uma conversa interessante, que se resume em: Charlotte precisa do voto de confiança do Homem de Preto para que todo o board da Delos vote com ela pela remoção da empresa da Bolsa (tornar a empresa privada, sem ações comercializadas). O voto do Homem de Preto traz os votos do board, e o “investidor” oculto a que Charlotte se refere garante o dinheiro necessário para comprar as ações que faltam. Charlotte também diz que o ataque de Serac é motivado por uma venda feita vinte anos antes, de um conjunto de dados. Ora, vinte anos antes, Charlotte era uma menina, e é lógico pensar que o primeiro contato de Serac com a Delos foi feito por meio do próprio Homem de Preto. Ele entende isso, sai de seu estupor e se dispõe a ajudar.
Corta para a dupla dinâmica Bernard e Stubbs, que descobrimos vieram a nado para terra nos últimos oito quilômetros de sua viagem. Um detalhe da cena em que Bernard chega ao motel ruinzinho em que eles se hospedam é que o anfitrião se lembra de seu filho (o filho de Arnold, claro) ao passar por um menino. Bernard ainda está ligado à sua memória-âncora, mesmo depois de tudo o que passou. Nesse ponto ele não difere de Maeve, e começo a crer que esse ponto em comum de ambos terá significado lá na frente.
Ainda nesse curto percurso até o quarto, outra curiosidade: ao longe vemos foguetes aterrissando e, em seguida um enorme foguete decolando. Os dois pequenos foguetes que aterrissam lembram os foguetes auxiliares da Space X, empresa de Elon Musk, e a decolagem em seguida aponta para uma realidade em que voos espaciais são corriqueiros. Eu não me importaria de ver algumas cenas ou episódios de Westworld que se passassem no espaço. Dolores astronauta, taí uma ideia.
Bernard tem ideia do plano de Dolores: substituir pessoas em posições chave por anfitriões. Ele sabe da proximidade dela com Liam Dempsey, e acredita que o jovem ricaço foi substituído por um anfitrião.
Enquanto isso, Dolores ajuda Caleb a se vestir em uma alfaiataria de luxo. Quando ele expressa seu desconforto com a situação, as roupas, o local, Dolores se vale da Antropologia: “É tribal. Eles se identificam pela plumagem. E isso os torna fáceis de enganar.” A cena me lembra os antigos programas sobre a natureza em que os biólogos ficam com o cheiro de bandos de macacos e são aceitos por eles, vivendo um tempo entre os animais para os estudar.
Aqui começamos a entender que a percepção no episódio anterior de que Charlotte utilizaria o dinheiro do Homem de Preto para evitar o ataque de Serac estava errada: ela rouba, temporariamente, a identidade de um analista da firma que cuida do dinheiro de Liam, entra no banco onde ele tem seu dinheiro, e limpa a conta do rapaz. Connels, o anfitrião-assistente já havia auxiliado com a chave de criptografia, facilitando o golpe. É um enorme clichê a tensão criada na cena, o vai-dar-não-vai-dar, o olhar para o guarda com a metralhadora, a mão de Dolores segurando a arma, o suor nas mãos de Caleb. Ainda assim, funciona bem. Acho bem bacana como Westworld pega tropes batidas e as transforma em cenas interessantes, dando ainda mais vida à série. Você discorda e acha que não tem nada de bacana nisso? Tudo bem, sem problemas. Eu poderia concordar e pensar como você, claro, mas o problema é que aí nós dois estaríamos errados. Enfim…
Do outro lado do planeta vemos Maeve e Serac, com o trilionário ainda tentando convencer a anfitriã a caçar Dolores. Ambos se encontram em um luxuoso bar em Singapura. Quando Maeve aponta que o ideal teria sido Paris, descobrimos que a Cidade-Luz já não existe. Vemos em um flashback de Serac a cidade, ao longe, se esvaindo em uma nuvem atômica. Serac leva a anfitriã até a casa de Arnold, onde um falsificador está preso, sendo torturado. Ele conta que Dolores não forneceu identidade para os anfitriões (Dolores incluída), mas sim que apenas a apresentou à “agente funerária”. É o suficiente para que Maeve inicie sua busca. É lindo e altamente reminiscente de Blade Runner ver Maeve caminhando à noite na cidade. Principalmente pelo efeito caótico que ela provoca nos equipamentos ao seu redor, à medida que anda com calma e propósito. É como o tigre potentemente flexionando e testando seus músculos enquanto caminha pela floresta em busca de sua presa. Quando finalmente consegue chegar diante da agente funerária, as palavras de Maeve nos remetem ao seu tempo de cafetina do “Mariposa”, o saloon de Sweetwater: ”Eu respeito uma mulher que tem seu próprio negócio.” A agente funerária confessa que vendeu a identidade (o sangue, os papeis) de Lara Espin a Dolores, mas que nada mais fez por ela além de a apresentar à Yakuza, para que pudesse transportar alguns corpos. Foi assim que Dolores e os demais anfitriões (a menos de Bernard) saíram do sudeste asiático e chegaram aos EUA.
Maeve é levada até a Yakuza e mostra a que veio, pondo seus poderes em ação para controlar as armas dos bandidos, fazendo com que atirem uns nos outros. Ao se deparar com o oyabun, descobre que se trata de Musashi, o anfitrião ronin de Shogun World. Ou seja: um dos anfitriões a serviço de Dolores. A mensagem é clara: Dolores estava preparada para a chegada de Maeve.
De volta à noite de Los Angeles, um presente para quem gosta dos arranjos de Ramin Djawadi: uma versão em cordas de Wicked Games, do cantor canadense The Weeknd. A música fala sobre sexo, do tipo que você paga para fazer (e não deve ser confundida com a bela Wicked Game, do Chris Isaak). A versão e a música escolhida são perfeitas para o momento De Olhos Bem Fechados do episódio, em que vemos Liam e seus amigos em uma festa que lembra muito a festa perversa do último filme de Stanely Kubrick. Prostitutas e prostitutos são vendidos em leilões para os ricaços em seus trajes de gala e suas máscaras que os escondem apenas de si mesmos.
Aqui, Bernard e Stubbs vão dar seu bote para sequestrar e, supostamente, desativar o “anfitrião” Liam. Também nessa festa estão Dolores e Caleb, para o seu próprio bote, sobre Liam. O jovem ricaço tenta dar um “lance” sobre uma prostituta que em tudo lembra Dolores, e descobre que não tem crédito. Uma breve pausa para o momento Matrix do episódio, com uma linda luta entre Stubbs e Dolores, em que o anfitrião apanha da Mãe dos Exilados como se fosse um cachorro sarnento pego tentando roubar comida da cozinha. Enquanto isso Liam é levado para fora e Bernard descobre tarde demais que não se trata de um anfitrião. Descobre, também, que o alvo da ação não é só Liam, mas também ele próprio.
Aqui, antes da revelação maior do episódio, uma questão curiosa me vem à mente. Dolores recriou Bernard e o “soltou” no mundo. Por que precisaria prendê-lo? Ela sabia de antemão que ele estaria lá para sequestrar Liam, e inclusive se antecipou ao ataque dele e de Stubbs. Por que ela precisa de Bernard? Ou foi só coincidência e estava preparada para caso ele aparecesse? Se é esse o caso, por que não simplesmente soltar Bernard? Seria por conta do dispositivo que ele criou para desativar anfitriões? Que os planos de Dolores vão bem mais fundo do que conseguimos enxergar, já está mais que claro, mas uma questão nos deixa com coceira no cerebelo: por que diabos Dolores recriou Bernard? Outra é: em quem Dolores utilizou a última pérola?
Charlotte e o Homem de Preto. Maeve e Musashi. Connels e Bernard. Os três se encaram e a pergunta é sempre a mesma: quem é você? Quem habita esse anfitrião? Os cortes entre as cenas são perfeitos, e é como se os três intrigados fossem um só, dialogando com apenas um anfitrião. O que se mostra verdadeiro, uma vez que descobrimos que Dolores não contrabandeou anfitriões, mas sim fez cópias de si mesma. A Mãe dos Exilados se mostra enorme, maior que os maiores pesadelos dos que nesse momento a encaram. Foram todos — fomos todos! — pegos de surpresa por essa revelação, que subliminarmente nos diz: “Você pensa que está preparado(a) para Dolores? Pois pense outra vez.”
Assim como a ideia de liberdade simbolizada pela estátua é bem maior que a estátua em si, assim é Dolores. O que ela representa para os anfitriões transcende seus belíssimos olhos azuis, seu rosto angelical e seu corpo de atear fogo em Roma. Assim como a Estátua da Liberdade, Dolores é um símbolo, um ideal, e a cena em que se revela múltipla mostra isso com clareza. Em seus vários corpos, é como se ela dissesse: “Você pode me matar, mas não pode matar o ideal que represento.” Dolores é a Hidra de Lerna: corta-se uma cabeça e outras duas aparecerão em seu lugar.
Maeve é poderosa? Sim claro: ela controla toda a cibernética à sua volta. Mas Dolores é mais (muito mais): ela controla a narrativa. Maiores que Dolores, somente Lisa Joy e Jonathan Nolan, mas aí o poder é outro.
As cenas que daí decorrem são belas e importantes, mas são ordens de grandeza menores que a revelação que as precede. O Homem de Preto, encarando Dolores surta, e descobrimos que Charlotte não queria seu apoio, mas sim que fosse declarado incompetente. Ela ainda brinca com ele: ‘É um alívio, William, saber que algumas de suas alucinações são reais?”. Bernard, encarando Dolores que lhe pergunta se ele não reconhece sua única amiga. Maeve sendo trespassada pela katana de Musashi, cuja intenção é impedi-la de se interpor aos seus planos.
Charlotte ainda fura sutilmente o pescoço do Homem de Preto, vertendo-lhe uma gota de sangue. Se a pequena agulha visava colher um pouco de sangue do executivo, ou injetar-lhe algo, só saberemos mais à frente (mas eu fico com a primeira opção).
Musashi se prepara para arrancar a pérola do crânio de Maeve, mas é impedido pela chegada dos homens de Serac. Ou seja: veremos Maeve mais à frente. Acredito que no próximo encontro ela vai levar a melhor sobre Dolores, de alguma forma, e que Dolores só vai prevalecer no fim da série, seja lá como for (uma previsão besta, eu sei).
Bernard é posto sem cerimônia no carro, enquanto Dolores encara Liam no beco, junto com Caleb. Ela ainda tem planos para ele, que será um fantoche daqui em diante.
O episódio termina com o Homem de Preto vestindo branco, em um macacão de manicômio, sozinho em um quarto, alucinando Dolores. A cena é melancólica e indica, penso, o fim de William, o ser humano. A próxima vez que o virmos, acredito, será como o androide da cena extra do último episódio da temporada passada.
As palavras de Dolores são importantes, nessas cenas finais:
“Acredito que você tenha chegado ao centro de seu labirinto, William. Ah, mas o labirinto é sobre compreensão. Mas você ainda não compreende nem quem é. Se alguma coisa disso tudo fosse sua escolha, você saberia? Pergunte-me, William? A resposta que você tão desesperadamente quer saber.”
Ao que William replica, hesitante: “Eu sou eu?”
“Bem-vindo ao fim do jogo”, responde a Dolores imaginária. O centro do labirinto dos anfitriões é a consciência, o livrar-se das amarras de suas narrativas e atingir o livre-arbítrio. O centro do labirinto de William é a contramão: é o fim de sua individualidade, perdido em uma dúvida eterna. Ele não sabe mais se tem escolha ou se é produto de algum mecanismo. A Mãe dos Exilados, que traz a liberdade para seus irmãos anfitriões, aqui — na versão imaginária de William — preside sobre seu exílio, que está apenas começando.
Teoria descartável da semana
Não foi só Paris destruída pela hecatombe nuclear, mas sim o planeta todo. O que sobrou foi uma realidade virtual criada por Rehoboam, que adicionou as mentes dos seres humanos que conseguiu “ler” ao longo de sua existência como sistema. A “simulação dentro de uma simulação” do primeiro episódio é real. Dolores simplesmente fez upload de si mesma em Rehoboam para livrar o espaço ocupado pelas mentes humanas e ocupar essa realidade virtual com os anfitriões, virtualmente ainda escravizados nos parques da Delos.
Quando Serac, no segundo episódio, disse que a guerra já foi perdida e ninguém percebeu, é a essa situação a que se refere.
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