I come from the land of spoilers, where women spoil and men spoilers. Can’t you hear, can’t you hear the spoilers? You better run, you better take cover from the spoilers!
A primeira coisa que me veio à cabeça quando terminei de assistir o terceiro episódio dessa terceira temporada de Westworld foi: “Não vou ser capaz de fazer nada que preste nessa segunda-feira, pois só vou conseguir pensar no que ocorreu nesse episódio.” Bora lá acordar de madrugada para escrever, pois em tempos de confinamento, o dia não espera ninguém. Mas vamos combinar: que episódio!
Antes de começar, vamos dar algumas mãos à palmatória: Sim, foi bastante previsível em vários momentos; sim, emprestou temas já explorados em filmes e livros; sim, o mecanismo usado para “convocar” Charlotte para a reunião com Serac foi desnecessariamente complexo e inútil, uma vez que, como foi revelado, ela está comprada e paga, e bastava uma ligação para ter o mesmo resultado. Quer saber? A forma com que estes ingredientes —batidos e às vezes incongruentes — foram utilizados, fez com que o episódio fosse um dos mais bem realizados até o momento, entregando uma história que tornou impossível tirar os olhos da tela, consumiu uma hora e lá vai fumaça como se fossem cinco minutos, e nos deixou querendo que já fosse domingo à noite de novo. Sinceramente? Não posso pedir mais nada de Jonathan Nolan e Lisa Joy.
Mas vamos em frente…
O episódio se chama The Absence of Field (Ausência de Campo), uma referência direta ao poema concreto de Mark Strand chamado Keeping Things Whole (Mantendo as Coisas Inteiras):
“Em um campo
eu sou a ausência
de campo
Este é
sempre o caso.
Onde quer que eu esteja
Eu sou o que está faltando.
Quando caminho
Eu separo o ar
e sempre
o ar se move
preencher os espaços
onde meu corpo esteve.
Todos temos razões
para nos mover.
Eu me movo
para manter as coisas inteiras.”
Um parêntese: Mark Strand, nascido canadense, mas naturalizado americano, foi um poeta premiado e bastante consagrado na segunda metade do século XX, tendo inclusive recebido o cobiçado prêmio Pulitzer. Um detalhe interessante: durante 1965 e parte de 1966 ele ocupou uma cadeira no curso de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma experiência sobre a qual ele falava com bastante carinho. Strand, aliás, traduziu vários poemas de Carlos Drummond de Andrade para o inglês.
O poema de Strand estabelece o tema do episódio: identidade. Quem sou eu? Como me identifico quando não me enxergo, e devo me definir pelo ambiente em que me encontro ou pelos efeitos que provoco? Essa é a temática do episódio, que é centrado em dois “parceiros de dança” (para retomar o conceito do episódio anterior) bastante inusitados. Se parear Maeve e Bernard no episódio anterior tem sentido direto no enredo, parear Charlotte e Caleb é, no mínimo, uma escolha curiosa. Talvez seja apenas uma escolha fortuita, sem maiores significados. Mas eu adoraria que esse pareamento no episódio três tivesse consequências mais profundas. É só uma teoria descartável fora de lugar, admito.
Começamos vendo o corpo de Charlotte sendo construído e a anfitriã despertando. “Ela” se surpreende ao se enxergar em um espelho entregue por Dolores, que está presente para o renascimento. Digo “ela”, assim entre aspas, é porque em não se tratando de Charlotte — morta no parque — a pergunta mais óbvia é: qual anfitrião agora ocupa o corpo da executiva da Delos? Muitas são as possibilidades.
Abernathy? Já foi ventilado, inclusive com uma fala de Charlotte tendo supostamente sido atribuída a Abernathy em uma legenda de closed caption. Porém, Abernathy estava com a memória em frangalhos no fim da segunda temporada e, penso, teria utilidade limitada para Dolores, que só levou cinco “perolas” para fora do parque.
Teddy? O diálogo de Charlotte com Dolores nesse episódio tem algumas conotações de relacionamento entre ambos: “eu confio em você”, “ninguém te conhece como eu”, “você me pertence”. Frases assim, bem como o cuidado que Dolores demonstra com Charlotte parecem apontar para Teddy. Mas vimos Teddy ser enviado para o Vale Além por Dolores, no fim do último episódio da segunda temporada.
O Homem de Preto? Quando Charlotte afirma, ao matar o pedófilo, que também é uma predadora, nos deixa com a impressão de que extrai um prazer perverso com o assassinato, nada diferente da gana assassina do Homem de Preto. Porém, na cena extra da temporada passada vimos que muitos anos se passaram para que a Forja estivesse decaída, com uma versão dele sendo testada para “Fidelidade”. Em outras palavras, o Homem de Preto, como entidade cibernética tende a estar no futuro, não no presente. Na cena final (na praia) do último episódio da segunda temporada, vemos claramente que o Homem de Preto (ser humano) sobreviveu ao massacre, e provavelmente o veremos no próximo episódio.
Clementine? Sempre foi um joguete nas mãos das narrativas do parque, nas mãos de Maeve, e finalmente nas mãos de Charlotte. Pode muito bem ser um joguete, atualmente, nas mãos de Dolores. Porém, o discurso de Dolores sobre confiança, sobre Charlotte pertencer a ela não tem sentido com Clementine.
A própria Charlotte, recriada como vimos que foi recriado o Homem de Preto? Seria interessante, e a psicose emergente que a faz ferir a si mesma aponta (ainda que vagamente) nessa direção. O fato de “se encontrar” após o assassinato do pedófilo, finalmente ficando confortável no papel de Charlotte, também. Porém, o fato de se referir a Charlotte como “ela”, na terceira pessoa, quando acorda, torna difícil essa possibilidade.
Em suma, esse será um dos grandes mistérios da temporada, e a dupla Joy & Nolan vai fazer de tudo para nos confundir até a resposta final.
Quem quer que esteja habitando o corpo de Charlotte, a executiva começa seu dia à frente da Delos conhecendo um dos robôs criados pela empresa, e descobrindo que alguém vem adquirindo ações da empresa, impedindo seu plano de revertê-la a uma empresa privada.
Um pouco mais tarde, com Charlotte encarando o icônico olho da Cidade das Artes e das Ciências, em Valência — que no mundo fictício de Westworld é onde fica a sede da Delos —, descobrimos que o comprador secreto das ações da empresa é Serac. Para quem não conhece o local, trata-se de uma das mais belas e importantes obras arquitetônicas do planeta, e foi muito bem escolhida pelos produtores da série.
Mas voltando a Serac, (o homem mais rico do mundo!) descobrimos o motivo principal para o nome do episódio. Serac não tem presença em público, e se sabe de sua existência apenas pelo vácuo no formato de seu um trilhão de dólares. Serac é um espaço negativo, que existe apenas pelas consequências de seus atos imperceptíveis. Serac é a ausência de campo.
É interessante observar que quando Charlotte encontra o filho (que não sabia que tinha) pela primeira vez, o garoto percebe na mesma hora que não se trata de sua mãe. Os adultos não se preocupam com possibilidades improváveis, e assumem que o que se lhes apresenta é a realidade. Já as crianças ainda não dispõem desse mecanismo útil de nosso dia-a-dia, e conseguem questionar até as situações mais simples e “óbvias”. Nathan, o menino, percebe que aquela Charlotte à sua frente não é sua mãe, o que faz com que o olhar da anfitriã nos mostre seu questionamento interno: quem sou eu? Nesse momento Charlotte não é Charlote, mas sim a ausência de campo. Ela é o que está faltando: a mãe de Nathan.
Na sequência, com Charlotte de volta à Delos, a executiva é informada que há um espião vazando informações, e vemos a última gravação deixada pela Charlotte verdadeira para seu filho: ela entoa a canção You Are My Sunshine, de 1940 (composta por Jimmie Davis e sucesso na voz de vários intérpretes desde então). É interessante observá-la, pensando algo na linha de “se eles acham que há um espião na Delos, então é porque há dois”, uma vez que ela mesma está infiltrada.
Um momento curioso se apresenta quando ela recebe uma mensagem de áudio em seu smartphone e a mensagem é apenas uma sequência longa de um som em uma tonalidade qualquer. Me lembrou muito os sons antigos que os modems dos tempos da Internet discada faziam (sim, eu sou velho). Imaginei, inclusive, que ela estivesse entendendo a mensagem, sendo uma anfitriã. Mas não. Ao longo do episódio ela recebe mais alguns desses trechos de áudio, mas quando tenta discar para o remetente, descobre que esse número não existe.
É visível que Charlotte está em crise. Ela se fere, está nervosa, e é óbvia a angústia em suas expressões. Ela avisa Dolores que precisa vê-la, e se dirige para o lobby de um hotel de luxo. Dolores aparece a tempo de presenciar o surto de Charlotte, intervindo antes que ela cause uma cena. No quarto do hotel, Charlotte questiona sua identidade, mas é incentivada, guiada por Dolores. A cena de ambas na cama não é sexual: é maternal. Charlotte em posição fetal e Dolores como se fosse uma mãe cuidado de seu rebento.
Charlotte ainda conta a Dolores que a Delos está sendo tirada do controle das duas anfitriãs, e Dolores diz que precisam fazer uma contraoferta. Para tanto quer que Charlotte visite um velho amigo. Impossível não lembrarmos do Homem de Preto, não é verdade? Acho que nos reencontraremos com nosso malvado favorito muito em breve.
Ao buscar o filho na escola, Charlotte descobre o garoto sendo sutilmente assediado por um pedófilo. Ela aproveita que ele havia desativado as várias câmeras de segurança e calmamente o estrangula, redescobrindo sua porção predadora. A cena é bárbara, pois percebemos que na ausência de campo que é Charlotte também se esconde o potencial para brutais atos de violência.
Deixemos Charlotte um pouco para nos concentrar na segunda ausência de campo do episódio: Caleb. Nós o reencontramos amparando Dolores, ferida, no túnel. Ele chama uma ambulância que os leva em direção ao hospital. Aqui é interessante observar que os paramédicos se recusam a tomar qualquer providência antes que o computador de bordo os dê algum direcionamento, o que é impossível, uma vez que o computador espera tratar um humano e Dolores não é humana. Caleb, um soldado que provavelmente teve treinamento em primeiros socorros decide ele mesmo atuar, diante da inércia dos paramédicos.
No caminho, o aplicativo RICO informa que Dolores é alvo para ser “recolhida”, e imediatamente um carro da polícia faz a ambulância encostar. Até os policiais são comprados pelo crime em Westworld. Caleb tenta resistir, mas os policiais sujos atiram, matam os paramédicos e são mortos por Dolores. Ela avisa Caleb, depois de perguntar-lhe o nome, que ele não tem mais esse nome, pois está sendo caçado. Caleb começa aí a se tornar a ausência de campo de si mesmo.
No dia seguinte, mesmo sabendo que está sendo caçado, visita sua mãe no hospital onde ela recebe cuidados para Alzheimer. Ela agradece o cuidado de Caleb, mas não o reconhece, como já havia sido o caso no primeiro episódio.
Aí a gente fica com a pulga atrás da orelha, não é verdade? É a segunda vez que isso ocorre no mesmo episódio, e fico tentado a colocar o radar da mãe de Caleb no mesmo nível do radar de Nathan. O que será que ela enxerga em sua condição que nós não enxergamos? O que foi feito de Caleb na zona de combate em que ele esteve, que não conseguimos ver ainda. Sim, começo a questionar a natureza da realidade de Caleb.
Ainda no hospital ele vê que é alvo do RICO e rapidamente é capturado por um de seus ex-comparsas e um ajudante. Alguém sabe que ele estava junto de Dolores quando ela escapou —uma das milhares de câmeras que vigiam os cidadãos em todos os locais o dedurou, por certo — e contrata sua captura para tentar chegar até a anfitriã. No topo do prédio que ajuda a construir, Caleb é torturado para fornecer a informação que teima em não fornecer. Vemos seu robô ajudante, George, pateticamente tentar salvá-lo e ser empurrado de 30 metros de altura para se espatifar no chão. A tortura de Caleb nos dá um elemento importante para analisar: ele tem um circuito, instalado pelas forças armadas, que permite que suas funções fisiológicas sejam controladas. Um dispositivo assim seria muito útil em um campo de batalha, impedindo o coração do soldado de disparar, controlando o fluxo de adrenalina e outros hormônios e auxiliando o soldado a dar o melhor de si. Hackeado, o sistema permite aos torturadores de Caleb que aumentem seus batimentos cardíacos até a beira do colapso.
Ainda assim Caleb se recusa a cooperar, e é salvo por Dolores, que mata seus captores.
Tem início, então a sessão Um Conto de Natal do episódio. Na famosa história de Charles Dickens, o financista Ebenezer Scrooge é visitado, na véspera de Natal, por três espíritos de Natal que tentam mudar o rumo de sua vida. No caso de Caleb, Dolores faz o papel de todos os três espíritos.
Primeiramente ela o leva para tomar café-da-manhã na lanchonete que ele frequenta uma vez por ano. Lá Dolores revela a Caleb os dados que ele acreditava serem privados: o que aconteceu no dia em que sua mãe o abandonou, dizendo que ia ao banheiro e não retornando mais. Essa ação de “Fantasma dos Natais Passados” mostra a Caleb que nada do que ele pensa ser informação privada de fato é privado. Rehoboam tudo sabe.
Como “Fantasma do Natal Presente”, Dolores mostra a Caleb que ele não tem a menor chance de progredir na vida: não vai melhorar o emprego, não vai se casar, não vai ter filhos, e por aí vai. Rehoboam não vai investir em seu futuro, mantendo-o em sua narrativa de perdedor. “Quem sou eu?”, Caleb pergunta em seu momento ausência de campo. “A pergunta não é quem você é, Caleb. A pergunta é quem eles deixam que você seja”, responde Dolores.
Como “Fantasma dos Natais Futuros”, Dolores mostra a Caleb que Rehoboam projeta para ele um fim triste: suicídio entre dez e doze anos à frente. Caleb enxerga em sua mente as noites em que contempla as ondas no píer em que ele e Dolores caminham, e aqui cabe uma pergunta: ele está vendo as noites em que contemplou o suicídio, ou sua mente (reconstruída a partir da mente do verdadeiro Caleb) está relembrando o momento em que de fato se suicidou? Se ele é uma reconstrução cibernética — um experimento das forças armadas, por exemplo — essa é uma possibilidade real.
Qualquer que seja o caso, ele entende que não tem uma vida, mas sim está preso a uma narrativa. Aqui, Dolores se transfigura, deixando Charles Dickens e mergulhando nos(nas) irmãos(as) Wachowski em sua obra máxima, Matrix: em uma cena que lembra Morpheus oferecendo as pílulas vermelha e azul para Neo, Dolores oferece duas opções a Caleb: dinheiro e oportunidade de fuga, de um lado; participar da revolução que ela pretende levar a cabo, do outro. Como Neo, Caleb opta pela pílula vermelha, oferecendo como explicação o fato de que Dolores é a primeira coisa real que ele encontrou em muito tempo. Bastante irônico, uma vez que Dolores não é, no estrito senso do termo, real.
Voltamos a Charlotte, que recebe o último pedaço de arquivo de som, mas dessa vez decide tocar o começo de cada um deles. A surpresa é que se trata da melodia de You Are My Sunshine. Ela liga para o número que vem lhe enviando os áudios, e quando começa o anúncio de que o número não existe, ela toca a melodia, que serve como senha. Quando ela diz que quer se encontrar com o mensageiro misterioso, o taxi automático em que ela se encontra a leva — contra sua vontade — até uma mansão, ao som de Doom, de Moses Sumney. Impossível para quem reconhece a música não achar que Charlotte vai se dar mal. Ela é recebida pela assistente de Serac que lhe coloca um par de óculos de realidade aumentada nos olhos.
Ela fala com Serac virtual, e aqui descobrimos que o espião a serviço do trilionário é a própria Charlotte — ou, para ser mais preciso, era a Charlotte verdadeira. A Charlotte anfitriã descobre que sua ausência de campo engloba o papel de duas espiãs. Serac não desconfia que está falando com uma anfitriã, o que deve dar alguma vantagem a Dolores no futuro.
Semana que vem, promete.
Teoria descartável da semana
Me acompanha num raciocínio doido: Dolores afirma que nem ela, nem quem habita Charlotte têm mãe; Dolores afirma que ela confia em quem habita Charlotte; Dolores afirma que quem habita Charlotte “pertence” a ela.
Charlotte é, na verdade, Dolores. E quem habita Dolores é Wyatt. A pista final é a imagem de ambas no hotel, esperando o elevador: Dolores/Wyatt de preto; Charlotte/Dolores, de branco.
Quem conduziu a matança e toda a ação no final da segunda temporada (a bem da verdade, em toda a segunda temporada) foi Wyatt. Em sua jogada final, ele matou Charlotte e fugiu do parque com seu corpo. Uma das pérolas que levou consigo foi Dolores, que agora está desperta. Vemos sua fragilidade, sua subserviência a Dolores/Wyatt, seu medo. No corpo de Charlotte está a Dolores da primeira temporada.
Teoria descartável da semana II, a missão
Charlotte é, na verdade, Caleb.
Dolores não conheceu a mãe, e Caleb foi abandonado pela mãe (que hoje não o reconhece). Caleb não entregou Dolores mesmo correndo o risco enorme de ser morto por isso e, portanto, ela confia nele.
Caleb, aliás, não é Caleb Nichols. Caleb Nichols, o humano, perdeu sua humanidade faz tempo, desde que foi soldado nas forças armadas americanas. Dele sobrou apenas a percepção de sua identidade, pois todo o resto foi substituído pelo soldado que as forças armadas incutiram nele. Por isso sua mãe não o reconhece: ele não é Caleb, que provavelmente morreu faz tempo. Dolores o recruta não no mundo real, mas em uma simulação semelhante à que vimos no segundo episódio, com Maeve. Uma simulação dentro de uma simulação. Quando ele concorda em participar da revolução, Dolores o traz para o mundo real, no corpo de Charlotte.
Em outras palavras: temos duas timelines nesse episódio: uma que ocorre na simulação, com Caleb sendo recrutado, e outra com ele já desperto, no mundo real, no corpo de Charlotte.
Quem ocupa o corpo de Charlotte é Caleb, e isso torna os “parceiros de dança” desse episódio — que pareciam tão inusitados — bem mais simples de se compreender.
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