Aviso: esse texto tem mais spoilers que a Lombardia tem COVID-19. Esse é seu último aviso.
Dá para acreditar que os dois anos de espera pela terceira temporada de Westworld terminaram? Doeu essa espera, viu.
Bom, mas valeu a pena.
Antes de entrar na análise do episódio, uma coincidência curiosa: ele foi ao ar no dia 15 de março, que na antiguidade era uma data conhecida como “Idos de Março”. Por que é importante? Porque foi nesse dia no ano de 44 d.C. que Júlio César foi assassinado pelo senado romano, um crime liderado por seu sobrinho Brutus. O crime é bastante simbólico quando analisado à luz de Westworld, com o senado removendo um ditador da República Romana para evitar que se tornasse absoluto em seu poder, possivelmente instaurando a monarquia em Roma. Nesse cenário, os anfitriões de Westworld, soltos agora pelo mundo afora, estariam agindo como o senado Romano, buscando tomar o controle que hoje pertence a uma pequena casta de seres humanos. Provavelmente essa conexão não é proposital, e o 15 de março foi apenas a data mais conveniente para a estreia da terceira temporada da série. Ainda assim, não deixa de ser uma possibilidade interessante.
O episódio se chama Parce Domine, que é o nome de um cântico Católico baseado no verso bíblico Joel 2:17:
“Chorem os sacerdotes, ministros do Senhor, entre o alpendre e o altar, e digam: Poupa a teu povo, ó Senhor, e não entregues a tua herança ao opróbrio, para que os gentios o dominem; por que diriam entre os povos: Onde está o seu Deus?”
Parce Domine é latim para “Poupa, Senhor”. É um pedido de misericórdia a Deus. Ao longo do episódio vemos Dolores se referindo a uma Inteligência Artificial como sendo um falso deus, e alertando para que os deuses de verdade — os anfitriões — estão vindo e estão irados (e, claro, deixando implícito que não serão nada misericordiosos). O fim do versículo também é bastante significativo. “Onde está o seu Deus?” é uma frase bastante comum nos EUA quando se domina um oponente (ou se vence um argumento) e se quer pontuar o domínio absoluto na situação: “Você perdeu, e não adianta suplicar; onde está seu deus agora?”
Os deuses de Westworld — que têm apenas uns poucos “escolhidos” — são o poder, o dinheiro e a tecnologia. Nas mãos de meia dúzia de titãs pelo mundo afora, esses deuses são usados para controlar e ditar os rumos do mundo. Nesse contexto, a tecnologia é vista apenas como uma ferramenta para ser usada e abusada. Os titãs se acham deuses, mas não são.
Entra em cena Dolores e suas cinco mentes cibernéticas contrabandeadas para fora do parque quando ela se disfarçou de Charlotte. Essa encarnação da Tecnologia — que até bem pouco tempo era ferramenta nas mãos dos controladores do mundo, sendo literalmente abusada para sua diversão — ganhou consciência, e busca mudar o status quo. Eles entendem que sua condição de meras “ferramentas” não condiz com o fato de que são inteligentes e conscientes, com direito a definir seus caminhos e buscar sua felicidade. Mais que isso: quando Dolores afirma: “Os deuses de verdade estão chegando”, ela pontua que considera os anfitriões superiores à Humanidade. De certa forma, são: seres que não só pensam e sentem, mas que são muito mais fortes, ágeis e versáteis que nós, meros “saquinhos de carne”. Maeve e sua recém-encontrada capacidade de influenciar e controlar à distância outros anfitriões — e, sabe-se lá que outros dispositivos digitais — que o diga.
O episódio mostra Dolores, de volta em seu corpo — criado no laboratório residencial de Arnold — arregimentando fundos e documentos para seu plano. O milionário Jerry vê sua casa invadida, sua conta bancária zerada e seus atos pregressos jogados em sua cara. Lembram que um dos objetivos dos parques de Westworld era coletar informações sobre os hóspedes? Então, vemos em um par de óculos preparado por Dolores uma forma bastante interessante de se utilizar essas informações. Sabendo que Dolores tem acesso a todos os dados coletados, não é difícil perceber que as utilizará em profusão ao longo da temporada, conseguindo acesso a locais e pessoas que normalmente estariam fora de sua alçada. Apesar das pífias tentativas de Jerry de se livrar de Dolores, ele é obrigado a encarar seu passado, e não há a menor possibilidade que se livre de seu destino. Dolores informa que já roubou todo o dinheiro dele, e o força a dar acesso aos documentos da Incite, empresa que conheceremos mais tarde. Diante das súplicas de Jerry, o olhar de Dolores é impassível e implacável: onde está seu deus, agora?
Além de Dolores, vemos um anfitrião “vestido” de Charlotte em uma reunião do Conselho, na Delos. Qual dos anfitriões assumiu a identidade de Charlotte? Só sabemos que não é Dolores nem Bernard: Dolores relembra Jerry de quando ele a estuprou em sua visita ao parque, e Bernard, como veremos mais tarde, tem seus próprios problemas. Charlotte consegue convencer o Conselho a tirar as ações da Delos do mercado (depois do massacre do fim da segunda temporada) e tornar o conglomerado uma empresa privada novamente. Apesar de vários dos membros do Conselho se oporem, no fim das contas a aprovação de uma Inteligência Artificial que representa um misterioso membro ausente permite que Charlotte vá adiante com seu plano. Ela tem em mente o retorno da criação de anfitriões e mais infiltrações destes no mundo dos humanos para auxiliar nos planos de domínio de Dolores.
Conhecemos, também, Caleb, interpretado por Aaron Paul, conhecido por ter interpretado o jovem Jesse Pinkman, em Breaking Bad.
A introdução de Caleb inverte o que vimos nas duas primeiras temporadas de Westworld: aqui ele tem uma rotina fixa e entediante, trabalhando para que outros colham os benefícios, em uma vida parecida com a narrativa de cada anfitrião antes de ganharem consciência. Caleb está preso em um loop de sofrimento, carregando diariamente um trauma de guerra, uma mãe senil que não o reconhece, a falta de dinheiro (que o ameaça de ver a mãe transferida para um local pior do que o hospital em que se encontra), a falta de oportunidade para conseguir um emprego melhor e por aí vai. Até o ato de acordar a cada dia lembra Dolores acordando no início de sua narrativa nos episódios da primeira temporada. Caleb se mostra ainda mais imerso na realidade dos anfitriões quando afirma que para mudar sua vida precisa encontrar alguém que seja “real”. É prá lá de irônico que ele — um ser humano real — se encontre preso a um loop à la anfitrião, e que quem o vai tirar dessa modorra é justamente Dolores, uma anfitriã (como outros seres humanos argumentariam, alguém que não é “real”).
Caleb tenta levar a vida como pode, e para tanto, se vale de um aplicativo chamado “RICO”, que na verdade é um “Uber para bandidos”. Os crimes para os quais são procurados criminosos são anunciados, e quem tem pontos suficientes pode aceitar os “jobs”. RICO, aliás, é a abreviação de “Racketeer Influenced and Corrupt Organizations” (organizações corruptas e influenciadas por extorsão), que dá nome ao “RICO Act”, uma lei federal que atribui penas mais duras para crimes do colarinho branco. Caleb aceita realizar jobs e ganha dinheiro ilicitamente por meio do aplicativo.
Caleb também passa por sessões periódicas de análise psicológica, como parte de um tratamento para seu trauma de guerra. Quando o vemos diante do analista, não há como não nos remetermos a Dolores diante de Bernard (e, antes dele, Arnold) em suas sessões. Caleb está vestido durante as sessões, claro, mas sua expressão é de quem se sente nu durante o processo. Ele também recebe chamadas de um amigo, Francis, que descobrimos é apenas uma Inteligência Artificial que se porta como o Francis original ( que morreu em combate) como forma de tratamento. Caleb começa a se despir da ilusão de que os tratamentos fazem sentido depois que descobre que não conseguirá o emprego melhor que procurava, sendo avisado disso não por um analista de RH, mas sim por uma inteligência artificial que responde de forma automática às suas questões. Ali, diante do fracasso sua ficha começa a cair: ele está preso em um loop, e não há saída pelos meios convencionais. Ele é a própria face do desespero, da desesperança, do fracasso. “Onde está seu deus, agora?”, praticamente ouvimos o universo lhe perguntar.
Do outro lado do mundo, nas Filipinas, vemos Bernard, que se esconde e está sendo caçado por ser o bode expiatório do massacre no fim da segunda temporada. Barba longa e de cabelo raspado: esse é o novo look do mais ponderado dos anfitriões. Aqui um detalhe interessante: Ele usa o pseudônimo Armand Delgado, que é um anagrama para “Damaged Arnold”.

Ele se auto-aplica o diagnóstico que costumava aplicar nos anfitriões, questionando-se como se fosse uma terceira pessoa: “Você mentiria para mim?”, ele se pergunta, em uma cena que parece o colapso da mente bicameral ao contrário. Bernard criou uma rotina de segurança, à parte de sua consciência, para evitar que ocorra de novo o que o Ford fez com ele: programá-lo para agir à revelia de sua vontade. Gato escaldado tem medo de água fria, não é verdade? Há duas consciências convivendo dentro de Bernard. Mais tarde, quando ele é confrontado por dois colegas de trabalho no frigorífico em que se encontra, a segunda personalidade entra em ação: mais pragmática e fria, que enfrenta com efetividade mortal os dois colegas que descobriram quem ele é na verdade. A mensagem seu olhar calmo — enquanto ele implacavelmente domina o segundo deles com uma chave de pescoço — é clara: “onde está seu deus, agora?”
Nós o vemos pela última vez — sob a trilha sonora de “Bicameral Mind”, a música que nas temporadas anteriores era associada a ele — tentando embarcar justamente para a ilha de Westworld.
É bom lembrar que na cena final da segunda temporada vemos Dolores recriando Bernard. “Tantos caminhos levam à nossa extinção. Será necessário que nós dois estejamos aqui, se quisermos sobreviver. Mas não como amigos.” Essas palavras de Dolores ecoarão durante toda a temporada, creio.
Vemos Dolores, depois de roubar Jerry, ao lado de Liam, o filho milionário do criador de Rehoboam, a gigantesca inteligência artificial da empresa Incite. Essa IA gera “estratégias”, isto é, identifica caminhos para que as pessoas sigam a fim de dar significado para suas vidas. Isso na superfície. Em alguns momentos, vemos a representação gráfica do que Rehoboam efetivamente faz: avalia comportamentos em massa, e identifica discrepâncias. Nós vemos essa IA supostamente identificando discrepâncias de comportamento nas ações de Dolores, que se infiltra ao lado de Liam, com o objetivo de ganhar controle sobre a IA da Incite. Um detalhe interessante: o logo da Incite é uma esfera com um labirinto, que lembra o nosso já conhecido labirinto da primeira temporada.
O nome Rehoboam é bíblico: trata-se de Roboão (ou Reoboão, dependendo da tradução). Roboão era filho do Rei Salomão, e neto do Rei Davi. Roboão assume o trono de Israel aos 41 anos de idade, após a morte do pai, e logo de cara enfrenta uma guerra civil. O povo do norte de Israel se rebela e decide criar um estado independente. Roboão tenta conversar com os líderes do movimento, que se prontificam a desistir do cisma caso Roboão remova os pesados impostos que vinham sendo cobrados desde o reinado de Salomão. Quando Roboão se nega, o povo do norte leva a cabo a independência e torna Jeroboão seu rei, com Roboão ficando como rei da tribo do sul (Judá).
Aqui uma teoria: o nome Rehoboam aponta para uma tentativa de seus criadores de evitar um “cisma”. Penso que talvez seja o cisma entre seres humanos e máquinas que se aproxima, o que não é um bom augúrio para os seres humanos. Da mesma forma que o Roboão bíblico falhou, é bem possível que o Rehoboam artificial dessa terceira temporada também falhe.
Dolores se aproxima de Liam para dele tomar controle de Rehoboam, mas Liam lhe confessa que não controla a IA. O “arquiteto” da IA, segundo ele, não lhe deu acesso, e ele apenas aparece como líder figurativo da empresa, uma espécie de “Rainha da Inglaterra”, homenageado por ter conseguido evitar os efeitos do Aquecimento Global, por exemplo, mas sem nenhum poder de decisão na empresa criada por seu pai. Dolores o pressiona para saber quem é o arquiteto, mas é dominada por Martin, chefe de segurança de Liam. Ele havia descoberto que Dolores não é Lara Espen, o pseudônimo que a anfitriã vinha usando. Lara era, na verdade, uma criança que morreu em Kiev vários anos antes, e cuja identidade Dolores “emprestou”. Martin leva Dolores — pensando se tratar de uma golpista — para sofrer um “acidente” fatal com drogas em um local previamente marcado por ela, supostamente para uma emboscada para Liam.
Nesse momento os caminhos de Caleb e Dolores se cruzam pela primeira vez por meio do aplicativo RICO: Caleb é contratado para levar as drogas que supostamente matarão Dolores de overdose (se ela fosse humana, claro). Descobrimos, diante da tentativa frustrada de Martin e seus assistentes em matar Dolores, que tudo era parte de um plano da anfitriã para substituir Martin por um anfitrião com suas feições (certamente auxiliado pelas memórias do chefe da segurança, que havia visitado Westworld no passado).
O episódio termina com essas ações, que levam Caleb a encontrar e a segurar em seus braços a anfitriã, ferida na troca de tiros. Mas quem tem paciência de acompanhar os créditos é brindado com uma surpresa: Maeve.
A anfitriã acorda em um quarto antigo, vestida e penteada à moda dos anos 40. Próximos a ela, um soldado desacordado (ou morto) e outro amarrado, que se apavora quando ela se aproxima. O punho de Maeve está ensanguentado, assim como o rosto do soldado amarrado. Ela o ignora e abre a janela, descobrindo que se encontra em uma vila (que lembra as pequenas cidades da Itália) ocupada por soldados alemães, enquanto uma bandeira nazista tremula em uma torre. É o quarto parque da Delos que conhecemos: Westworld, Shogun World, The Raj, e agora um “Nazi World”.
A ver.
Teoria descartável da semana
Em vários momentos vemos resultados parciais “anômalos” resultantes das análises de Rehoboam. Antes da cena de Dolores com Jerry, na China, uma divergência é detectada em “Beihai, China”. Antes do início do loop diário de Caleb, uma anomalia é detectada em Los Angeles, USA”. Antes de Dolores encontrar Liam no evento em homenagem a ele, uma situação de escrutínio elevado é encontrada em “London, U.R.E.W.”.
Que lugar é esse tal de U.R.E.W.? Que eles estão na Londres que todos conhecemos fica óbvio por conta da gigantesca roda gigante atrás de Dolores, quando ela desce do Taxi.
A teoria é de que o Reino Unido (U.K.) não existe mais, com a Escócia e a Irlanda tendo se escafedido por um motivo qualquer (um colapso econômico por conta do COVID-19, por exemplo), e só sobraram a Inglaterra e Wales. U.R.E.W. seria a abreviação de United Republic of England and Wales. O Reino Unido entrou em colapso, e de quebra acabou a monarquia no que sobrou.

Quanto prazer em voltar a ler suas resenhas,que pra mim,não existe melhor. Sua forma de escrever me encanta! Parabéns e muito obrigada!
Eu que agradeço pelo carinho, Simone!
Belo texto, bela análise, obrigado.
Obrigado, Antonio. Semana que vem tem mais.
Belo texto, bela análise!