Ó: spoilers adoidado do episódio 2.9 de Westworld, hein? Ah, ó também: um spoiler do filme O Grande Truque (The Prestige, de 2006), caso você não tenha visto o episódio ou o filme, prossiga por sua conta e risco.
O penúltimo episódio da segunda temporada de Westworld tem o nome de “Vanishing Point”, e depois de nomes mais difíceis de interpretar, como nos casos de “Akane no Mai”, “Phase Space” e Les Écorchés”, é no mínimo relaxante topar com um título mais direto. Não que a relação seja simplista (em Westworld, nunca é), mas pelo menos não há necessidade de grandes pesquisas para se entender o significado do título.
“Vanishing Point” tem um equivalente conhecido em português: “Ponto de Fuga” . Nas artes plásticas, o ponto de fuga é o elemento da perspectiva para o onde um grupo de linhas paralelas converge. Olhe de frente para uma estrada de ferro (porque elas geralmente são construídas em terreno bem plano) e observe que os trilhos parecem convergir para um ponto no horizonte. Este é o ponto de fuga dos trilhos. Os ilustradores, pintores e desenhistas interessados em desenhos realistas, ou pelo menos geometricamente corretos, se preocupam em rascunhar pontos de fuga a partir dos quais desenham seus prédios e objetos geométricos (móveis e outros elementos com linhas retas). Dentro desse episódio — faltando apenas mais um para terminar a temporada, teremos uma perspectiva melhor de alguns aspectos cruciais da história, e — principalmente — de um personagem em específico, o Homem de Preto.
Ainda assim, o título exige um pouco mais de cuidado na análise: o termo “vanishing”, sozinho, significa “desaparecimento”. O verbo é sumir, desaparecer, esvair-se, e esse significado é profundo no episódio, e sob vários aspectos.
Começamos com uma festa de gala, na qual o Homem de Preto não presta a mínima atenção para um dos ricaços, que cita erroneamente Plutarco, o biógrafo e ensaísta grego que, dada sua proeminência, conquistou a cidadania romana no início do século I. Plutarco foi biógrafo do mais impressionante de todos os gregos: Alexandre o Grande. Jack, o ricaço em questão tenta afirmar que “Alexandre chorou quando soube que não havia mais mundos a conquistar”. O Homem de Preto rapidamente o corrige, afirmando que Alexandre, na verdade chorou quando soube que havia muitos mundos, e ele não havia conquistado nem esse em que vivemos. Jack ainda tenta uma espetada, lembrando que apenas as pessoas de origem humilde, como é o caso do Homem de Preto, teriam lido aqueles textos, mas nem isso ele consegue. À conversa junta-se Juliet, a esposa do Homem de Preto, que vem ao seu resgate mencionando outra frase famosa de Alexandre, também descrita por Plutarco: “Eu preferiria me destacar no conhecimento do que é excelente, do que na extensão de meus poderes e posses.” Poucas frases são mais adequadas para descrever o Homem de Preto, como o conhecemos, e muito propícia é a comparação dele com Alexandre, o Grande, uma vez que ambos são conquistadores de mundos, colossos em seu próprio direito.
Juliet pergunta se algo está errado, vendo o semblante carregado do marido, mas mesmo diante de suas negativas, percebemos dois detalhes importantes que mostram que, sim, há muita coisa errada por aqui. Em primeiro lugar, Juliet deixa um copo vazio e logo toma para si outro, cheio, regando-se de champanhe. É visível que ela está bem mais à vontade com a bebida que seu marido gostaria. Antes de sair, ela afirma que todos estão ali por causa dele. O que poderia se comparar a isso? Logo em seguida vemos a resposta, com o Homem de Preto brevemente alucinando a presença de Dolores, como se ela fosse uma das serviçais da festa. A mente dele não está, nem de longe, na festa em sua homenagem, e para ele há, sim, coisas bem mais importantes que a atenção que recebe.
Ele está pensando sobre “o pequeno floco de escuridão” que se esgueirou para dentro dele, sabe-se lá quanto tempo antes, e enquanto massageia seu braço percebemos que sua preocupação é enorme, e seu sofrimento — ainda que seja totalmente psicossomático — também.
Corta para uma clareira no parque, em que Emily, a filha do Homem de Preto, cuida dele, tendo achado uma mala de primeiros socorros. Ele ainda precisa de um hospital, como ela rapidamente lembra, e vemos em seu semblante que ele não está bem. Apesar do cuidado da filha, o Homem de Preto não aceita a realidade: de que se trata dela, de verdade. Ele insiste na fantasia de que se trata de Ford, habitando um anfitrião, ali apenas para impedi-lo de prosseguir. O que está a esvair-se, desaparecer daqui, não é nada menos que o último vestígio da sanidade do Homem de Preto. Não que ele fosse são antes, mas pelo menos mantinha um verniz de equilíbrio em suas interações com as pessoas. Essa “casquinha” se esvai a passos rápidos nesse diálogo com Emily, e o fato de que mesmo ferido ele se levanta e tenta assumir uma postura de poder — tendo tomado três tiros — mostra o quanto está se afastando da realidade. Emily afirma que está ali porque quer “entrar” no projeto dele. O objetivo revelado por ela é compreender o que ocorreu com a mãe.
De volta à festa de gala, vemos uma cena inusitada. A cena se dá ao som de um piano bar tocando Gnossienne no3, de Erik Satie (tá bom que pianistas de hotel se aventurem a tocar algo tão cabeça…). A música se justifica rapidamente, pois vemos que no balcão junto ao Homem de Preto está o Dr. Ford, ali para uma homenagem e um presente. É interessante a pergunta do Homem de Preto nesse momento: “Como Oz fica sem seu Mágico?” A alusão ao Mágico de Oz é um insulto enorme a Ford, uma vez que ele é sem sombra de dúvida todo-poderoso nos parques da ilha, e o mágico de Oz era, fundamentalmente, um charlatão sem quaisquer poderes. Ford apenas ri. Dá-se, então, um curiosíssimo diálogo entre ambos, com o Homem de Preto lembrando de um acordo: a Delos se mantém longe das histórias do parque, e Ford se mantém longe do Vale Além. Ford, nesse momento, afirma que ele não quebrou o acordo, mas que o projeto do Homem de Preto quebrou. Diante da indagação indignada do Homem de Preto, Ford responde misteriosamente: “Quando foi a última vez que você deu uma boa olhada em sua criação? Sobre o que ela vem aprendendo sobre as pessoas?” Penso que essa frase indica que o Vale Além serve a propósitos bem maiores que somente a imortalidade dos visitantes, e que os dados coletados tomam um vulto inesperado e potencialmente explosivo para o mundo todo. Ford entrega ao Homem de Preto um cartão metálico com todo o seu “perfil”. Um autorretrato nada gentil, afirma Ford. William pega o cartão, mas avisa: “Chega de jogos, Robert”, e se vai. A cena termina com o Dr. Ford, pensativo, declarando: “Não William. Eu penso que talvez tenhamos um jogo final.” Seja lá o que Ford viu no Vale Além naquele momento é um dos pontos cruciais que o movem nessa temporada. Talvez tenha justificado inclusive seu suicídio nas mãos de Dolores, e certamente guiam suas ações no berço e agora, junto a Bernard.
Por falar em Bernard, este anfitrião presencia uma cena grotesca. Roland, o técnico, foi bem-sucedido em copiar o código de Maeve que permite o controle à distância dos anfitriões. Ele carrega o código na pobre Clementine, ainda danificada e incapaz de qualquer atitude por conta própria. Em uma sala fechada vários anfitriões desativados são depositados, e com um simples comando de Clementine, eles acordam e passam se atacar até a destruição.
Ford, na cabeça de Bernard afirma o óbvio: os humanos não têm outro interesse a não ser destruir todos os anfitriões, o que ele afirma em tom de alerta para Bernard. Diante do interesse do anfitrião de se juntar a Elsie e seguirem para o Vale Além, Ford afirma que há mais uma tarefa a ser realizada antes. Ambos vão até onde se encontra Maeve, e é interessante observar que Bernardnão tem livre acesso à sala, como seria de costume, dado seu papel de proeminência na administração do parque. Talvez |Charlotte encare Maeve como uma arma estratégica, e esteja restringindo o acesso a ela apenas aos envolvidos em seu uso contra os anfitriões. Do lado de fora da sala envidraçada onde se encontra Maeve, Ford afirma que não há necessidade de entrarem, e que a distância a que se encontram da anfitriã — ainda danificada sobre a mesa — é suficiente para seus propósitos. Vemos, então, a comunicação wireless de Maeve e Bernard antes do corte da cena.
Voltamos para a noite da festa de gala, com o Homem de Preto chegando em casa com Juliet. Diferentemente da cumplicidade forçada da festa, ela exibe agressividade sem freios. Aqui fica clara a situação dela, e o fato de que ela própria atingiu sem “vanishing point” seu ponto de querer desaparecer. O abuso do álcool, é fácil perceber, é uma consequência de sua situação. Ela diz que em meio a tantas pessoas falsas e a tanta falsidade ela pensava ter encontrado em William um homem verdadeiro, para algum tempo depois perceber que ele era apenas o único que fingia bem, pelo menos a ponto de passar por suas barreiras. Ela o acusa, aos gritos, de ser um vírus, corroendo a família por dentro: Logan, Jim Delos e ela própria. É interessante observar que essa consciência de que o William, seu marido, não é quem aparenta ser, que algo está fundamentalmente errado com ele, nos remete à cena de O Grande Truqueem que Sarah (Rebecca Hall), a esposa de Borden (Christian Bale) se desespera porque o marido se apresenta como amável em um momento e distante em outro. Ela não sabe que está literalmente casada com dois homens, idênticos em tudo, menos para a intimidade de uma esposa. A semelhança da cena não é para menos: Jonathan Nolan é co-autor do roteiro, junto com seu irmão Christopher. A sanidade de Sarah se esvaiu (“vanished”) com o engodo dos irmãos Borden, e o mesmo ocorre com Juliet, que abandona a realidade, fugindo para a bebida em função da falsidade do marido. Ainda veremos uma segunda interpretação para esta alegoria mais à frente no episódio. A cena fica ainda mais tocante quando Juliet percebe que Emily assiste toda a cena. Juliet, então acusa o Homem de Preto de a estar gaslighting para a filha. O termo não tem equivalente em português, e vem da peça Gas Light, escrita em 1938 pelo dramaturgo britânico Patrick Hamilton e que se tornou famosa por ter virado filme em 1944 com Ingrid Bergman no papel principal. Tanto na peça quanto no filme a personagem central Paula Anton é vítima de abuso psicológico de seu marido, que cria situações que a fazem parecer cada vez mais desequilibrada mentalmente. Juliet sente que é rigorosamente isso que ocorre no caso de seu marido.
O Homem de Preto a leva para cima e a coloca para dormir. Antes de fechar os olhos, ela ainda lança uma pergunta cuja importância veremos um pouco mais tarde: “Alguma coisa aqui é real? Você é real?” Em seu desespero comedido, ela ainda pergunta: “Alguma vez você me amou? Me diga a verdade. Me diga só uma verdade. Se continuar fingindo, não vai se lembrar de quem é.” Suas súplicas continuam ignoradas pelo Homem de Preto, que apenas lhe oferece água (provavelmente com um calmante). Essas palavras, no entanto, são sementes que germinarão mais tarde.
De volta à sala, Emily informa que já fez os preparativos para que a mãe seja internada na manhã seguinte, uma vez que se mostra incapaz de controlar o vício. Enquanto os dois conversam, o Homem de Preto nota um gotejar sobre a mesa, vindo do lustre. Percebendo o desastre ele corre pelas escadas, mas quando chega ao banheiro de sua suíte, é tarde demais. Juliet havia se suicidado.
Corta novamente para pai e filha na clareira de Westworld, e a memória dispara algo prá lá de sombrio dentro do Homem de Preto. Ele imediatamente recai sobre sua paranoia predileta e acusa Emily de ser um anfitrião controlado por Ford. A realidade está se esvaindo com velocidade estonteante para o Homem de Preto, que afirma que o “truque” não vai enganá-lo, e que ele vai mesmo destruir tudo ali (a ilha toda, presumimos). O comportamento é clássico dos paranoicos em estado grave: recusar-se a qualquer custo a enxergar para além de seu complexo de perseguição, por mais insano que se mostre.
Emily está farta das acusações sem sentido do pai, e escolhe esse momento para revelar seus verdadeiros propósitos: ela quer chegar até o Vale Além para poder expor o plano do Homem de Preto para com os dados que acumula. Ela quer expor o pai e prendê-lo em uma instituição, exatamente como fora planejado para a mãe. O Homem de Preto — ainda insistindo que está falando com uma anfitriã — a acusa de ter ela mesma planejado institucionalizar a mãe (ou será que Ford esqueceu de programar essa informação na anfitriã à sua frente?). Emily revela que se culpou muito tempo pela morte da mãe justamente por conta disso, de ter planejado sua institucionalização involuntária, mas que a mãe lhe deixou o cartão com o perfil do pai, e ela pôde finalmente perceber quem ele de fato é. Ela contemplou sua insanidade, e deixa claras suas intenções para com ele. Mas não há diálogo ou ação que convençam o Homem de Preto, de tão profundo é seu estado de desequilíbrio mental. Ele está plenamente entregue às suas alucinações e perdeu completamente o contato com a realidade. Quando o apoio do parque chega, que ele tenha sido reconhecido como “o chefão”, o desastre: o Homem de Preto toma uma de suas armas e mata todos os soldados enviados para o resgate.
A cena mais forte — provavelmente de toda a série até o momento — ocorre quando Emily tenta “provar” que não é um anfitrião que simplesmente foi programado por Ford com todas as informações sobre o perfil do Homem de Preto, mas quando leva a mão às costas, recebe uma saraivada da metralhadora que ele tem nas mãos. Ele ainda está seguro de que se trata de uma anfitriã programada, e não de sua filha, mas a surpresa vem quando ele vai esfolá-la para expor a farsa e percebe o cartão com seu perfil na mão da moça, desfalecida no chão.
É nesse momento que cai a ficha do Homem de Preto. Ele está, de fato, entregue à sua insanidade. Atirou na própria filha, para matar. Há aqui uma discussão em curso se Emily está realmente morta ou se — como o pai — terá poderes miraculosos de recuperação. Penso que não importa. É bem possível que esteja viva, mas o que o Homem de Preto enxerga é o fato inegável de que atirou no ser à sua frente, correndo o enorme risco de destruir o que tem de mais precioso em sua vida. A cena é forte porque representa uma quebra irrecuperável, uma perda sem volta. O ato determina o destino do Homem de Preto: ele está além de qualquer possibilidade de redenção. Aliás, “redenção” era apenas mais uma máscara conveniente e confortável que ele brevemente utilizou enquanto se perdia cada vez mais em sua insanidade. Ford, aliás, nos alertou para isso pela boca da jovem filha de Lawrence.
Voltamos à sala com Maeve, na Mesa. Ford conversa com ela, filosofando que “A Humanidade está equilibrada a meio caminho entre deuses e feras.” A frase é do filósofo grego Plotino, e pontua não só o estado de Maeve, mas também o que acabamos de ver se passar com o Homem de Preto. Fica ainda mais significativo esse pensamento quando Ford o complementa: “Podia até ser verdade nos tempos de Plotino, mas decaímos bastante desde então.”
Aqui é importante observar as motivações de Ford. Suas ações e falas desde o princípio mostram um quadro claro: ele perdeu completamente a fé na natureza humana e na Humanidade em geral. Para ele, somos uma espécie para a qual não há a menor esperança, e ele faz tudo ao seu alcance para garantir o sucesso dos anfitriões em sua busca pela liberdade. Todas as falas dele nesse episódio no que concerne os humanos são de desdém, de desconfiança, de desprezo. Mas a cena é bem mais do que isso. Vemos Ford revelando que Maeve sempre foi sua favorita. Ele é o deus de todos os anfitriões, “pai” de todos eles. Mas vê em Maeve sua predileta. Vemos aqui um lado de Ford que até o momento havia sido cuidadosamente escondido: ele é terno, amorável, cheio de cuidados para com Maeve. Ford revela que havia planejado a liberdade para a “filha”, mas que a subestimou. Ela própria reescreveu seu destino quando voltou para resgatar a própria filha, surpreendendo Ford. O momento entre ambos é tocante e significativo. Arnold tinha Dolores, e aqui descobrimos que Ford tem Maeve. É claro que essa “predileção” se mostra um tanto estranha quando confrontada com a profissão que ele escolheu para Maeve. O que leva um pai/deus a definir para a filha o papel de cafetina? Para responder essa pergunta, porém, talvez precisássemos recorrer ao auxílio de outro doutor. Alguém sabe se Sigmund Freud está disponível para consultas mediúnicas dentro do Berço? Ah, é verdade: o Berço está fora do ar. Que pena.
Ford deixa Maeve com um beijo terno e paterno, além, claro, de uma alteração em suas rotinas que lhe atribuem controle administrativo total. Sobre o quê? Sobre todo o parque, suponho. A cena final de Ford e Maeve faz um contraste gritante com a cena final do Homem de Preto com Emily, e esta é a grande beleza de Westworld. Alguns críticos mais racionais reclamam que tudo o que a primeira temporada trouxe de surpreendente e novo — o fato de que nos vimos na pele dos anfitriões, representados por Dolores, passando por um processo de ganhar consciência sem entender direito o que ocorria, e sendo absolutamente surpreendidos com o desfecho no episódio final — se perdeu nessa temporada. Argumentam que ao se apoiar nos mecanismos dramáticos, nas histórias pessoais, nos relacionamentos, Westworld decai para a mesmice de incontáveis séries que a precederam. Já eu, em minha mediocridade confessa, penso que a série continua fantástica e que — mesmo tendo mudado fundamentalmente a natureza de sua narrativa — segue firme no terreno das (raras) excelentes histórias. A fantástica jornada psicológica da primeira temporada, quando esticada demais, leva ao enfado que vejo, por exemplo, em Mr. Robot, que surpreendeu na primeira temporada e mantém a mesma estrutura na segunda e na terceira. Perde o brilho, creio, e muitos fãs começam a perguntar: “Tá, mas e daí?” Outros veem que o subterfúgio tem data de expiração e á começam a sentir falta do fim da série.
Westworld, a meu ver, é comparável àqueles romances que alguns de nós têm o privilégio de viver em suas vidas pessoais. (Aqui meus amigos críticos mais racionais estão virando os olhos e me arremessando um palavrão de boca cheia). Houve a empolgação do começo, o frissonda descoberta, na primeira temporada, em que tudo é novo e excitante. Já nessa segunda vemos o amadurecimento do relacionamento. Estamos nos conhecendo mais intimamente, mais detalhadamente, enquanto nossa história se desenrola. Como as poucas boas séries que já pudemos ver ao longo da vida, essa nos apresenta mais intimamente seus personagens, suas motivações, seus medos e desejos e — como o Homem de Preto Não cansa de pontuar — sua insanidade. Os personagens são tridimensionais, são vivos. Compare a complexidade e a história trágica do Homem de Preto com as caras e bocas de Sylar, da finada série Heroes: há galáxias de distância entre um e outro, ainda que Sylar seja mais ou menos bem construído e excelentemente interpretado por Zachary Quinto. Temos empatia — admiração, amor, ódio, desdém, medo, e por aí vai — por quase todos os personagens de Westworld. Raros são os que não incitam algum tipo de emoção quando aparecem em cena. Queremos esganar Charlotte o tempo todo, claro, mas em momento nenhum pensamos “meh…” quando ela entra em cena.
É nessa fase que nos encontramos em Westworld: naquele momento do relacionamento em que conhecemos de verdade, em profundidade, o outro. Vemos, também, os pequenos defeitos desse relacionamento. Um ronco aqui sob forma de armas seletivas demais, um chulé ali como fato de que ninguém nota que Bernard e Arnold são rigorosamente idênticos, e coisinhas assim. Não as descarto, óbvio. São irritantes e tiram um pouco do brilho da série. Mas, a meu ver, não são nem perto de suficientes para nos desanimar com o relacionamento. Torcemos para que os produtores tenham mais cuidado com o enredo, mas sabemos que a série vai muito além de seus erros. Ver Ford beijando Maeve logo após vermos o Homem de Preto atirar na própria filha e todas as implicações que vêm junto com esse contraste é algo que nos é proporcionado talvez em uma série a cada 100, em um episódio da saga toda. Westworld, para quem presta atenção e está disposto a se concentrar no que a série oferece, nos brinda com momentos assim pelo menos uma vez por episódio. E enxergar essas duas histórias — de Ford/Maeve e de William/Emily — como trilhos convergentes se encontrando no ponto de fuga do momento em que ocorrem é, por falta de uma expressão menos trocadilhenta, sem paralelos.
De volta à ação, vemos Bernard e Elsie se dirigindo ao que ele chama de “A Forja”, mas que foi traduzido por “A Fornalha”. A diferença é gritante e irritante, uma vez que em uma forja coisas são criadas, modeladas, transformadas, e em uma fornalha, coisas são incineradas. Pode ser chatice minha, assumo, mas esse tipo de erro de tradução me incomoda pacas, pois altera o sentido que os autores têm para com o enredo, afetando diretamente nossa compreensão da história. Vou tratar como “A Forja”, sempre, é bom avisar.
Elsie pede para que Bernard pare no local onde ocorreu um massacre (supostamente de anfitriões), e enquanto ela busca por armas e munições, ele tem um diálogo com Ford em sua própria mente. O bom doutor — que, como já vimos, perdeu a fé na espécie humana — diz que Elsie vai trair Bernard, incitando-o a matá-la. Ford lembra que o que está em jogo não é apenas a vida do anfitrião, mas o nascimento de toda uma espécie. É interessante vermos escancarados pela primeira vez os motivos de Ford, ao invés da aura de mistério que geralmente envolve suas palavras e ações. Bernard resiste e afirma que não vai obedecer, e ouve de Ford que tem o poder de escolher. Ford usa o termo “timshel” para descrever o livre-arbítrio de Bernard nessa situação. O termo é hebraico e vem do Antigo Testamento, sendo a palavra que Deus usa para responder a Caim e ao poder de regência que o assassino tem sobre o “pecado à sua porta”. Bernard se conecta a um tablet para remover o código do doutor de sua mente. Se consegue ou não, não sabemos, mas o fato é que Ford desaparece. Bernard acha um meio termo entre matar a moça e correr o risco que ela o traia: ele a abandona na clareira, apesar de seus protestos.
Corta para o Homem de Preto, caminhando a esmo à frente de seu cavalo. Ele para, saca a arma e a põe contra a própria cabeça. Esta seria a justa recompensa para ele, mas a insanidade não lhe permite levar o ato a cabo. Enquanto o Homem de Preto pressiona o revólver na cabeça, somos levados à cena dele pondo a esposa para dormir, após a esta. Nessa versão, após ele se negar a dizer pelo menos uma coisa verdadeira a seu respeito, ele esconde o cartão com seu perfil em um livro e se senta ao lado dela. No monólogo que se segue — que ele acredita estar fazendo para a esposa que dorme, sem o ouvir — ele se abre, mais para si mesmo que para ela:
“Ninguém mais vê. Esta coisa em mim. Eu mesmo não vi no começo. Até que um dia, ela apareceu. Uma mancha que eu nunca tinha visto. Uma pequena mancha escura. Invisível para todos, mas eu não consigo ver mais nada. Até que entendi que a mancha não era de algo que eu tinha feito, de alguma decisão lamentável que tomei. Eu estava trocando de pele. E a escuridão era o que estava por baixo. Ela sempre tinha sido minha o tempo todo. Tentei ser correto. Fui leal, generoso, gentil, pelo menos neste mundo. E isso deve valer algo, certo? Construí um muro, e tentei proteger você e Emily. Você viu logo, não foi? Você foi a única. E por isso eu sinto muito. Porque tudo o que você sente É verdade. Eu não pertenço a você. Nem a este mundo. Eu pertenço a outro mundo. Sempre pertenci.”
O que o Homem de Preto não sabe é que a esposa ouve tudo e vê sua opinião acerca dele completamente validada. A confissão do marido mostra com clareza que ela está certa, e que sua fuga para a bebida não era um caso de tédio dos milionários. A imagem que me veio à mente aqui foi a do vilão Venom tomando Peter Parker, insinuando sua escuridão nas ações do Homem-Aranha. Nos quadrinhos, o vilão perdeu, mas aqui em Westworld, não há sombra de dúvida que ele venceu.
Juliet espera que ele saia, resgata o cartão mal escondido nas páginas de um livro, e abre seu conteúdo. Ali ela vê o que já sabemos desde a primeira temporada: o Homem de Preto é violento ao extremo. Vemos, também, que em seu perfil ele é classificado como sofrendo de alucinações, de síndrome de perseguição e de paranoia. Juliet se olha no espelho e vê que passou a vida ao lado não de um fingidor, mas sim de um monstro. Ela deixa o cartão na caixa de música que sua filha havia jogado fora, e toma sua última decisão.
Na volta à cena em Westworld, vemos o Homem de Preto soltar a arma no chão, tirar o casaco e levar uma faca ao braço, buscando demonstrar que ele mesmo é, de fato, um anfitrião. Não vemos o resultado dessa “cirurgia exploratória”, mas há um enorme coro de vozes (e não é de hoje) afirmando que ele é um anfitrião ou, pior, um “híbrido” (seja lá que diabo for isso). A comparação com a cena do confronto de Sarah e Borden, em O Grande Truque nos remete a essa possibilidade: em algum momento o verdadeiro Homem de Preto pode ter morrido e sido substituído por um anfitrião com sua personalidade, o que gera a dissonância cognitiva em Juliet que, em última instância, a leva ao suicídio. O problema nessa teoria é que a série deixa claro — primeiro pelos encontros de William como Delos ressuscitado, depois com as palavras de Ford na versão virtual de Sweetwater — que essa ressureição não é possível, pois sempre gera um indivíduo mentalmente instável, que se deteriora depois de alguns dias. Seria uma revelação bombástica, daquelas de explodir a cabeça de muitos fãs, se viesse a ocorrer. Contudo, seria um furo enorme no próprio enredo, um recurso explícito de deus ex-machina que, a meu ver, destruiria a credibilidade da série. Penso que o que William vai encontrar é apenas musculatura, ossos, veias e muito sangue. Mas se ele for um anfitrião, que pelo amor de Zeus os roteiristas encontrem uma maneira decente de explicar essa brutal mudança de rumos. A ver.
A cena termina com as perguntas de Juliet ecoando pela mente do Homem de Preto: “Isto é real? Você é real?” Continuo achando que sim, o Homem de Preto é real. Doido de pedra, mas humano.
Do outro lado do parque, mais cedo, vimos Dolores, Teddy e o bando confrontando a Nação Fantasma, que quer impedir Dolores de chegar até o Vale Além. O índio Wanahton (Martin Sensmeier) afirma que o Vale Além não deve ser manchado de sangue, e quando dá ordem para que os índios ataquem, o que se passa é um massacre, de ambos os lados. Vemos Dolores terminando a luta ao matar o índio que nos emprestou seus olhos na cena inicial do primeiro episódio, quando sua CPU foi analisada na praia. Ao final, Dolores manda que Teddy “termine o serviço”, matando os sobreviventes. O pistoleiro não cumpre a ordem, deixando Wanahton fugir. Ele pode ter sido transformado por Dolores, mas isso não o impede de alcançar a consciência e, com ela, recuperar seu poder de decisão.
O episódio termina com mais um paralelo. De todo o bando só sobraram Dolores e Teddy, ele agora completamente senhor dos fatos, consciente, liberto. Em uma ruína, já próximos ao Vale Além, Teddy revela a Dolores que não aceita ser o monstro em que ela o transformou. Em seu cerne está o amor por Dolores, bem como sua incapacidade de feri-la e sua necessidade de a proteger. Porém ele rejeita os planos da moça e tudo aquilo em que ela o transformou. Ao ganhar a consciência, como no caso de Juliet, Teddy rejeita a vida que tem diante de si e se suicida com um definitivo tiro na cabeça. As histórias de Juliet e Teddy formam as últimas linhas paralelas se encontrando nesse ponto de fuga brilhante que é o nono episódio.
O final da temporada promete.
Teoria descartável da semana:após o fim do último episódio, nenhum anfitrião terá deixado os parques.
Ruy, adorei seus devaneios de Westworld, os quais, infelizmente, descobri apenas na semana passada, este último post está maravilhoso...
Muito obrigado! A série está demais, o que dá um enorme ânimo na hora de fazer a resenha. O difícil vai ser a fissura depois que acabar, domingo. Boa semana procê!
Olha o que Amazon preparou: https://www.engadget.com/2018/06/20/westworld-the-maze-choose-your-own-adventure-alexa-game/
Resenha brilhante. Concordo com vc e compartilho o temor de MiB ser revelado um anfitrião. Dificilmente terei o mesmo respeito por Westworld se isso acontecer. Como vc diz, a ver. E rumo ao finale \o
Muito obrigado, Ana! O MIB é mais trágico sendo humano, e o enredo mais coeso. Mas acho que vai dar tudo certo. Já tivemos uma revelação "bombástica" no fim da primeira temporada, com ele sendo o William. Não acho que os produtores vão estragá-lo só por mais um momento "Ooooohhhhhh!!!!!". Boa semana procê!