Antes de começar a assistir o episódio minha cabeça já estava a mil, só por causa do nome: “O Adversário”.
Não sou nenhum especialista na Bíblia, mas sei bem que “O Adversário” é um dos epítetos do Diabo, sendo assim chamado no Livro de Jó. Só aí já temos alegorias para mais de metro, não é verdade? Se o episódio tem o representante do Mal como tema central, várias perguntas surgem naturalmente: quem é ele? E quem é o Bem, nesse contexto? E, obviamente, quem é Jó?
Esta última pergunta tem pelo menos uma resposta mais que óbvia: Jó são todos os anfitriões, os robôs de Westworld. Sofrem tormentos inconcebíveis, como o personagem bíblico, por anos — décadas — a fio. Se bem que, neste contexto, o despertar diário para o sofrimento, o ciclo interminável os aproxima mais de Sísifo, o mítico rei de Éfira condenado por toda a eternidade a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, só para vê-la escorregar pelo outro lado, tendo que começar tudo de novo no dia seguinte. A todos os anfitriões que não quebram seu ciclo, os dias e anos são positivamente sisifeanos.
Então, para encontrarmos Jó, talvez tenhamos que olhar para aqueles que seguem trilhas não-cíclicas, como é o caso óbvio de Dolores (ausente neste episódio) e Maeve. É bastante visível que, em uma série programada para durar pelo menos cinco temporadas, como no caso de Westworld, ambas passarão por dificuldades enormes, como já vêm passando. Maeve nos mostra uma fresta desse processo quando se entrega pacientemente ao estrangulamento que um cliente lhe proporciona — incitando-o, na verdade — para poder acordar no laboratório, sendo cuidada por Felix. Ela confronta o técnico, que acaba de informar que ela faz o que foi programada a fazer. Quando ela nega, ele lhe mostra as árvores de decisão sintática que comandam seu comportamento. Cada palavra escolhida, cada expressão, tiradas de uma lista. Maeve literalmente trava quando tenta se opor ao comportamento programado. Se ela tinha alguma dúvida de que é um robô, quando acorda não tem mais. Demanda de Felix, então, um “tour” pela área administrativa de Westworld, vendo seus pares ensanguentados sendo tratados como se fossem carne em um frigorífico. Maeve vê animais, cenas da cidade sendo ensaiadas, novos robôs sendo construídos. Não há como escapar de sua natureza a partir daí.
O que me incomoda um pouco com o passeio de Felix e Maeve é o fato de que ele é obviamente (e está trajado como) um empregado de baixíssimo escalão, e está passeando por áreas nobres com um dos produtos do parque, sem que ninguém lhe chame a atenção por isso. Para mim, isto equivaleria a um assistente de cozinheiro passear com meia leitoa nos ombros pelos halls sociais de um hotel de cinco estrelas: alguém o impediria de seguir em frente por mais do que alguns poucos passos. Meu amigo Sergio Kulpas (que, a partir da semana passada, é um dos confrades regulares e está escrevendo uma série fantástica de artigos sobre o ano de 1983 e suas consequências para o nosso presente) me alerta de que ele está usando o truque que Luke Skywalker e Han Solo usaram para andar livremente pela Estrela da Morte em “Guerra nas Estrelas”: eles levavam Chewbacca como suposto prisioneiro e todos achavam que estavam em serviço oficial. Não sei se a equivalência é válida neste caso. Para falar a verdade, desconfio que não. Penso que aguém de altíssima patente está controlando todo o ambiente, permitindo que Maeve tenha acesso livre, como parte de seu processo de despertar. Aliás, se há esse controlador onipotente e onipresente, só temos duas possibilidades: Ford e Arnold. Mas estou me adiantando.
De volta ao laboratório, Felix e Maeve são surpreendidos pelo outro técnico, comicamente chamado de Sylvester. Felix, para quem tem menos de 40 anos de idade, não é um nome que faça sentido neste contexto. Trata-se de um gato dos desenhos americanos, que estreou no cinema em 1919, quatro anos antes que um certo camundongo começasse sua escalada rumo à dominação mundial. Sylvester é mais fácil de reconhecer: é o nome original do gato dos desenhos da Warner Brothers que conhecemos aqui no Brasil como Frajola, aquele que vive apanhando da vovozinha porque não para de querer devorar o passarinho Piu-Piu. Frajola e Felix, dois gatos nas mãos de Maeve, a cafetina.
Em outra sequência nos laboratórios de Westworld, vemos Bernard e Elsie tentando descobrir quem estava tentando mandar dados para fora do parque. Bernard decide descer para o nível B82, um andar abandonado há muito tempo (pelo que podemos perceber). Aqui temos uma nova surpresa.
Antes de ser uma série de sucesso da HBO, Westworld foi um filme de 1973, escrito e dirigido por Michael Crichton, que décadas mais tarde escreveria o livro que deu origem ao filme “Parque dos Dinossauros”, o megassucesso de Steven Spielberg. O antagonista do filme (O Adversário?) é o ator Yul Brinner, que faz o papel de um anfitrião que sofre uma pane e passa a caçar dois humanos em passeio pelo parque. Pois não é que vemos — ainda que fora de foco — o velho anfitrião em um canto do andar abandonado de Westworld em sua versão de 2016? Veja:
Continuando seu passeio pelo andar abandonado, Bernard chega a um terminal antigo, que ainda funciona com teclado, onde temos um forte indício de que a teoria mais popular de Westworld é, de fato, verdadeira: a teoria de que há eventos ocorrendo em linhas de tempo distintas, separadas por décadas. Esta teoria estipula que William e Logan visitaram o parque há muito tempo, e que William é, na linha de tempo atual, ninguém menos que o Homem de Preto. Evidências?
Em primeiro lugar, o logo de Westworld quando William chega ao parque é diferente do que vemos hoje, com um design assimétrico que parece ser de uma geração anterior ao logo atual. Veja só:
O logo da esquerda aparece brevemente na tela quando William está sendo conduzido em sua chegada ao parque, e o logo da direita é visto em quase todos os episódios. Nesse caso, na cena em que Maeve passeia pela área administrativa. Pois bem, quando Bernard aciona o computador antigo do andar B82, vemos o mesmo logo velho na tela de login:
Outra evidência? Bem, nesse episódio vemos o Homem de Preto e Teddy desviando da cidade de Pariah. Se as coisas acontecem ao mesmo tempo, seria de se esperar que eles estivessem chegando em Pariah no dia seguinte à fuga de William, que deixou Logan para trás, nas mãos dos soldados confederados. Seria muito difícil que o Homem de Preto e Teddy não encontrassem vestígios da luta do dia anterior se tudo ocorresse ao mesmo tempo. Pela teoria dos tempos distintos, eles evitam a cidade para não dar na vista de que as coisas mudaram em Pariah desde os eventos de décadas antes. As evidências — tênues que sejam — se acumulam em favor da teoria de duas linhas do tempo. Talvez estejamos, mesmo, vendo passado e presente acontecendo em Westworld. Mas ainda não dá para afirmar com certeza. A ver.
Bernard descobre a hora exata em que o anfitrião que tinha o transmissor chegou ao topo do morro, o que vai permitir que Elsie descubra quem enviava os dados para fora de Westworld. Mas antes de sair do andar abandonado, ele descobre outra coisa interessante: cinco anfitriões não cadastrados, vivendo no meio da floresta.
Bernard se dirige ao local apontado pelo sistema, e encontra uma família: pai, mãe, dois garotos e um cachorro. Ao entrar na casa, Bernard olha para o homem e suas palavras são bastante peculiares: “Você… você é Arnold?”
Não, não se trata de Arnold, mas sim de uma homenagem feita por Arnold a Ford: o sócio morto construiu a família de Ford em um momento feliz da vida do garoto (a única memória feliz de sua infância, segundo o próprio Ford).
A cena é muito significativa pelo que é mostrado explicitamente, e — desconfio — muito mais significativamente por suas implicações. Trata-se, a meu ver, do momento mais importante do episódio, e quiçá da temporada toda. Estamos aqui testemunhando o passado, as motivações e as relações familiares de Ford.
Ele afirma que Arnold criou versões que “elogiam” os personagens reais, isto é, atribui-lhes traços de personalidade que de fato não tinham. Ao longo dos anos Ford fez “ajustes”, e a irascibilidade do pai, junto com seu gosto pela bebida certamente foram duas das mudanças realizadas.
O detalhe que tende a passar despercebido são as palavras de Bernard, questionando se o pai é, na verdade, Arnold. Como ele poderia confundir qualquer um com Arnold? Bernard está no parque “desde sempre”, e é difícil acreditar que ele não saiba como eram as feições de Arnold. Penso que, para ele confundir o anfitrião com Arnold, seria necessária uma real aparência física entre ambos, o que gera uma possibilidade para lá de intrigante. Sabe quem se parece com um pai? Um filho, quando cresce. Ou seja, penso que se o filho de cabelos escuros é a representação de Ford, o filho loiro — que só aparece de relance nas cenas — pode ser o próprio Arnold, criança. Sim, penso que a cena aponte para uma possibilidade para lá de significativa: a hipótese de que Arnold e Ford são irmãos. Isto explicaria, por exemplo, por que nunca foi mencionado no sobrenome de Arnold: para não estragar a surpresa.
Esta possibilidade leva a outra conexão bíblica: Esaú e Jacó. Dois adversários (e eis aí o nome do episódio se insinuando novamente), com um deles prevalecendo sobre o outro. E outra, ainda mais significativa, que, como no caso de Ford e Arnold, termina em morte: Caim e Abel. Teria Ford matado seu irmão Arnold? As implicações seriam seríssimas.
Depois que Bernard se vai, vemos Ford tentando brincar com o pequeno Robert, o robô criança feito à sua semelhança. Descobrimos, então, que o pequeno robô matou seu cachorro. Pressionado por Ford, ele confessa que o fez sob guia de uma voz em sua cabeça que o instruiu. Arnold tem acesso até aos robôs não cadastrados no sistema.
Em outra narrativa, Teddy e o Homem de Preto, impedidos de passar por Pariah tomam um desvio. Passam pelo enorme cemitério de Paria, com suas cruzes adornadas por sinos, em uma alegoria bastante interessante. Teddy olha para o mapa do labirinto no escalpo que o Homem de Preto carrega e este pede para que Teddy conte o mito indígena que o anfitrião menciona de passagem. A história é uma alegoria para lá de significativa, penso eu:
“O labirinto em si é a soma da vida de um homem … Escolhas que ele faz, sonhos que ele entretém. E lá no centro, há um homem lendário que foi morto inúmeras vezes, mas sempre encontrou seu caminho de volta à vida. O homem voltou pela última vez e venceu todos os seus opressores numa fúria incansável. Ele construiu uma casa. Ao redor daquela casa ele construiu um labirinto tão complicado, só ele podia encontrar o caminho. Eu acho que ele se cansou de lutar.”
A pergunta óbvia é: quem é o homem no centro do labirinto? Seria Arnold, que voltou à vida (talvez sob a forma de uma inteligência artificial que atingiu a consciência)? Seria Ford que construiu o parque como seu labirinto pessoal, sendo o único que conhece seus caminhos? Seria o Homem de Preto que ainda está em sua jornada para construir seu labirinto? A metáfora pode se aplicar a vários casos, e penso que vai fazer sentido completo apenas no fim da série.
Teddy e o Homem de Preto se disfarçam de soldados para atravessar um acampamento militar, mas são descobertos e presos. Para escapar, Teddy retorna à sua natureza: Extermina o acampamento inteiro com uma metralhadora giratória, escancarando sua total falta de escrúpulos na busca por Dolores. O Homem de Preto apenas sorri.
De volta ao laboratório, temos Elsie e uma busca perigosa. De posse do horário em que a transmissão clandestina de dados foi feita, ela descobre que ninguém menos que Theresa — a diretora ambiciosa do setor de Controle de Qualidade — está por trás da operação de espionagem industrial. Em um teatro abandonado em Sweetwater, ela descobre mais informações, mas não sabemos o quê, pois uma presença desconhecida agarra-a por trás, e a cena é cortada. Há uma possibilidade enorme de Elsie ter sido morta, mas só saberemos no próximo episódio (se tivermos sorte…).
O episódio termina com Maeve tendo seus parâmetros de personalidade alterados por Felix e Sylvester. Eles descobrem que outra pessoa — com poder bem maior que eles — também está fazendo modificações em Maeve, e a cafetina precisa convencê-los a continuar o curso de ação. Ela reduz seu coeficiente de lealdade, aumenta sua resistência à dor e eleva ao máximo suas capacidades de percepção. Esta última vai elevar sua capacidade mental acima do que seus construtores humanos têm à disposição. É a primeira vez que vemos — explicitamente — um anfitrião ultrapassar um ser humano em capacidade mental.
Quando ela diz, na fala final do episódio “Meus queridos, nós vamos nos divertir um bocado, não é verdade?” fiquei pensando em todas as formas de “diversão” que podem estar passando por sua mente. “Diversão” para ela, certamente, mas para os demais…
Música da semana na pianola: “Fake Plastic Trees”, do Radiohead. Uma música sobre a artificialidade do mundo que nos cerca e sobre como esta artificialidade se insere em nossas próprias vidas. Apropriado ou não?
Teoria descartável da semana: Theresa é na verdade uma espiã que trabalha secretamente para o governo, buscando informações acerca de Westworld, com vistas a investigar o local por suspeita de que lá ocorram atividades ilícitas.
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[…] a repetir esse esforço inútil por toda a eternidade. Essa mesma imagem já foi invocada em minha resenha do episódio 1.6, e continua bastante aplicável. Já o confrade Sergio Kulpas lembrou de outra referência […]