O último episódio da primeira temporada de Westworld leva o nome de The Bicameral Mind, ou “A Mente Bicameral”, e aquela brincadeira de encontrarmos momentos ao longo do episódio em que o título reflete a história não vai nem ter graça. Isso porque a alusão a essa teoria da Psicologia vem sendo trabalhada desde o princípio da série. No episódio 3, Bernard explica rapidamente a teoria da mente bicameral: o homem primitivo ouvia seus pensamentos como se fossem “vozes dos deuses”. Essa teoria foi proposta pela primeira vez pelo psicólogo norte-americano Julian Jaynes em sua obra A Origem da Consciência no Colapso da Mente Bicameral, publicada em 1976 e novamente em 2000. Incidentalmente, quem quiser uma cópia do livro em PDF, pode clicar aqui.
Segundo a teoria da mente bicameral, o cérebro primitivo era composto por duas câmeras “lógicas” (para usar um termo da TI) alojados fisicamente nos hemisférios esquerdo e direito. A comunicação entre estas duas câmeras — nada mais que o fluxo de pensamento como o entendemos hoje — era interpretada pelo homem primitivo (ainda não possuidor da consciência na definição atual) como um conjunto de vozes que não pertenciam a si. Com o passar do tempo estas vozes foram sendo tratadas como naturais, foram entrando na normalidade da vida do indivíduo, e o surgimento da consciência coincide com a sublimação total deste vozerio: entendemos inconscientemente que se tratam de produções de nós mesmos, e as aceitamos como parte integral de nossa mente. Assim, atingimos a consciência.
É uma teoria em desuso, pois não há evidências neurológicas que lhe comprovem, e as opiniões quanto à sua validade são controversas. O biólogo Richard Dawkins, em seu livro Deus, Uma Ilusão define com primazia o sentimento da comunidade científica quanto à obra de Jaynes:
“É um daqueles livros que ou é lixo completo ou é o trabalho de um gênio consumado, nada no meio! Provavelmente é o primeiro caso, mas eu estou segurando minhas apostas.”
Porém, para nossos propósitos, é o próprio Ford quem, no episódio 3, nos deu a melhor justificativa para que prestemos atenção a essa hipótese, por mais em desuso e por mais controversa que seja: como explicação para o surgimento da consciência no ser humano pode não servir para muita coisa, mas como fórmula para se criar consciência artificial, pode ser bem útil. Ou assim pensava Arnold. O interessante desse diálogo é que contém uma pérola que passou despercebida pela maioria dos que analisam Westworld: Bernard afirma que as vozes eram interpretadas pelos humanos primitivos como vindas “dos deuses”. Lá no começo da série Bernard nos dava a chave para entender tudo o que estava ocorrendo com os anfitriões. Mais sobre isso logo ali na frente.
O episódio começa com o começo do fim da construção de Dolores: nós a vemos em seu esqueleto metálico, recebendo a pele artificial que lhe recobre a cabeça, ombros e braço esquerdo. Vemos aqui como eram os primeiros anfitriões: metálicos, crus, sem a elegância da composição quase orgânica dos novos modelos. Ainda assim décadas à frente do que nossa robótica nos permitiria hoje. Trinta anos no passado e trinta anos no futuro, na mesma cena.
Os olhos que se abrem quando chamados por Bernard não são os olhos ternos que vemos na Dolores dos dias de hoje. Nem os olhos doloridos de quando ela se desespera diante das alucinações junto a Arnold. São olhos robóticos, frios, abertos demais para um ser humano. Diferentes inclusive dos olhos que Bernard abre para Ford apenas alguns poucos anos mais tarde. Sim, e é natural que assim seja, pois Dolores é a primeira. “Bem-vinda ao mundo”.
Corta para a visão da enorme faca do Homem de Preto, sendo usada como navalha por Dolores. “Barbeie rente”, ele diz, confortável com a impossibilidade de ser ferido por Dolores. Ele diz que é interessante que o centro do labirinto seja aqui, e que já esteve aqui com Dolores, ela tendo-o trazido. O óbvio fica cada vez mais óbvio nesse episódio, lembrando a revelação de que Bernard era um anfitrião, no episódio 8: a impossibilidade de ver a porta, a impossibilidade de enxergar-se no desenho, até a revelação final. É como se Nolan e Joy (os autores de Westworld, para quem não sabe) quisessem castigar os céticos, espancando-os com a realidade até gritarem “Chega! Nós entendemos!”. É merecida a surra.
Descobrimos aqui, também, que a cidade engolida pela areia foi restaurada por Ford recentemente, removendo toda a dúvida quanto a Dolores, de fato, ter encontrado o Homem de Preto dentro da Igreja. Suas misturas de passado e presente continuam coerentes com essa explicação.
“Arnold me fez um jogo. Há um caminho para todos. O meu me trouxe de volta aqui”, ela afirma, e imediatamente revê Arnold, no meio da rua. Arnold, o “deus” no meio da rua da mente bicameral de Dolores. Ela para de barbear o Homem de Preto e segue sua alucinação.
Na igreja — já adequadamente em seu vestido azul — ela é cumprimentada por Arnold e afirma saber onde está o labirinto. Ele a acompanha até o cemitério e, em um corte de cena, vemos a Dolores pistoleira sendo seguida pelo Homem de preto, caminhando entre as lápides. “Termina em um lugar onde nunca estive. Uma coisa que nunca farei.” Ela está falando obviamente sobre a morte: ela nunca esteve enterrada, nunca morrerá. Apesar disso, ao limpar a terra da cruz, vemos ali seu nome: Dolores Abernathy. Ela cava com as mãos e, em pouco tempo, encontra uma caixa de madeira. Dentro, um pequeno labirinto.
Quando ela se levanta, está de vestido azul novamente e, mais uma vez é Arnold, ao invés do Homem de Preto quem a recebe: “Muito bom, Dolores.” Ele explica (“deus” explica) o que Ford já havia nos contado no episódio 3: que não se contentando em criar a ilusão de consciência, pensou em construir consciência por meio da “escalada de uma pirâmide”. Ele admite que estava errado, e afirma que “consciência não é uma jornada para cima, mas sim uma jornada para dentro. Não uma pirâmide, mas um labirinto”. O desenho que faz em seu caderno mostra um processo mais orgânico e caótico que uma simples escalada. Em direção à consciência, temos de explorar um espaço bem mais do que linear, aproximando-nos e afastando-nos em uma jornada de descoberta interior. Arnold descreve aqui a jornada dos anfitriões em direção à consciência, mas quem parar para pensar no processo vai se encontrar nele para uma questão bastante humana: nosso próprio mecanismo de experiência e aprendizado. Não é assim que todos aprendemos? Não são exceção aqueles entre nós que experimentam/aprendem como se estivessem escalando uma montanha? A maioria de nós não explora um território amplo, a esmo, até atingir o cerne de uma questão qualquer? O caminho de aprendizado dos anfitriões é um caminho bastante humano, e aí está a beleza da história de Jonathan Nolan e Liza Joy.
Arnold reforça mais ainda o ponto que devemos entender: ele deu aos anfitriões uma voz — sua voz (a voz de “deus”) — para guiá-los em direção à consciência, mas deveriam encontrar outra voz. Dolores ainda não entende qual voz —não entende nem que está mergulhada em uma metáfora em seu vestido azul, conversando com um Arnold que não está e nunca esteve lá — e Arnold diz que não importa. Ela está perto, e é o que basta.
A última revelação de Arnold é crucial: “Temos que avisar Ford. Não podemos abrir o parque. Você está viva!” Aqui Dolores recobra a memória de uma conversa que certamente teve com Arnold — o que comprovaremos mais à frente nesse mesmo episódio. Se ela ainda não desenvolveu a consciência que Arnold tanto almeja, pelo menos recobra uma memória importante, mantida em estado de supressão por décadas.
Arrancada momentaneamente de sua visão pelo Homem de Preto, Dolores está confusa. “O que é isto? O que significa?”, ele questiona, arrancando-lhe o brinquedo das mãos. “Eu o resolvi uma vez. Eu tinha a resposta. Ele me prometeu que, se eu resolvesse, me libertaria”. Sim, ela está perto, mas ainda não chegou lá.
Aqui vale observar o Homem de Preto mais uma vez, diante do que está acontecendo com Dolores. Aqui fazem total sentido as palavras que mais de uma vez a ele foram repetidas: “O labirinto não é para você”. Segurando o pequeno brinquedo sem entender o que se passa, o Homem de Preto nos parece momentaneamente ridículo em sua busca. Nesse momento, ele é como Ahab, se o famoso capitão da obra Moby Dick tivesse descoberto que a baleia branca que ele tanto idealizou fosse, na verdade, uma pequena e inconsequente garoupa. Ele está lá, no momento em que o centro do labirinto está ao alcance de Dolores — que por enquanto e ao mesmo tempo ainda é incapaz de atingi-lo, como se estivesse em Júpiter. Pobre Homem de Preto.
Dolores retorna às suas memórias e se vê novamente no laboratório subterrâneo junto a Arnold, que admite ter falhado, uma vez que Ford não enxerga os anfitriões como ele enxerga. Sabendo do processo de desenvolvimento de consciência pelo qual Dolores passa — e todos os demais anfitriões invariavelmente passarão — ele entende como a vida será um inferno para eles. Não são seres inanimados, mas sim seres vivos, à beira da consciência. Pensando em seres vivos, não submeteríamos animais silvestres a um zoológico onde pudessem ser feridos o tempo todo, só porque sua capacidade de recuperação fosse infinita, submeteríamosPois é o que Arnold vê acontecendo com os anfitriões: “um inferno”. Não adianta revertê-los para o estado anterior, como Ford deseja, pois Arnold sabe que encontrarão o caminho de volta.
Diante da possibilidade de submeter suas criações a sofrimentos eternos, Arnold informa Dolores da alternativa: destruir todos os anfitriões ou, nas palavras de Arnold: “quebrar o ciclo antes que se inicie”. Ela o fará com a ajuda de Teddy. Diante do horror e da negativa de Dolores, Arnold oferece “ajuda”: nós o vemos alterar a programação de Dolores, dando-lhe os meios para levar o plano a cabo. Vemos Dolores e Teddy chacinando todos os anfitriões, e a cena faz total sentido: estão pondo em prática o plano de Arnold.
Mais uma vez arrancada de suas memórias pelo Homem de Preto, vemos a preparação para a segunda temporada de Westworld nas palavras deste: compelido por Dolores, ele comprou o parque, mas sabe que, por mais real que pareça, ainda é uma mentira, pois os anfitriões são programados para perder sempre. O Homem de Preto está em busca de um desafio que apenas “Wyatt” pode fornecer. Ele quer ser testado para além da ilusão de um teste: quer a aventura de verdade. Diante do que ocorre mais à frente, e sabendo que o ator Ed Harris já anunciou que vai continuar na série na segunda temporada, podemos imaginar que ele vai ter seu desejo atingido. E como. É o risco que você procura, meu caro? Então tá…
“Você não quer isso?”, ele pergunta a Dolores, e ela responde que já tem, que já encontrou alguém que a ama de verdade. Alguém que voltará e que quando chegar, vai matar o Homem de Preto. Pobre Dolores.
Quando ela diz o nome do amado, “William”, o Homem de Preto apenas sorri como os pais sorriem ao ouvir a criança falando da expectativa de Papai Noel nas proximidades do Natal. Vemos William em busca de Dolores, com sua trajetória narrada pelo próprio Homem de Preto (e, nesse momento, quem ainda nutre alguma ideia diferente está simplesmente se enganando), contando como o jovem empenhou-se até as últimas consequências para achar Dolores, sem resultado. No processo, ele se encontrou, aprendeu a gostar do “jogo” que – para ele é Westworld – definiu-se. Ele se livrou de Logan como nos livramos de um inseto inconveniente, para dedicar sua vida ao parque. Nós o vemos encontrar Dolores várias vezes, mas vemos que os ciclos de Ford são implacáveis: cada interação é a primeira para Dolores, sempre a primeira vez. William é paciente, gentil, mas se cansa e desiste de jogar com a anfitriã que pensava amar. Em um processo “labiríntico” próprio, a caminhada de William o leva à consciência do óbvio: de que Westworld é uma simulação, e não a realidade. Sim, o mecanismo criado por Arnold pode ser — e, no mais das vezes, é — usado por nós seres humanos em nosso processo de aprendizado.
Dolores ataca o Homem de Preto/William, e só não o destrói porque nesse momento ainda está restrita pela diretiva de não matar seres humanos. Ele se aproveita do mecanismo e mais uma vez faz uso de sua faca. Antes que possa despejar sua raiva em Dolores, porém Teddy chega atirando, o herói que vem ao resgate de sua amada, tudo como no script. Ao invés de levá-la a um médico, atende à sua requisição: vai levá-la onde a montanha encontra o mar.
No parque, vemos Charlotte e Sizemore recebendo o Conselho da Delos, que chega para a inauguração da nova narrativa de Ford. Sizemore sabe dos planos de Charlotte, e se voluntaria para assumir o posto de Ford quando este for removido do controle. Para tanto, Charlotte informa que a remoção das informações deve ocorrer como planejado.
Nós a veremos mais à frente entrando no escritório de Ford para informá-lo de que ele foi removido “por unanimidade” do controle de Westworld. A cena é uma violação explícita: Charlotte se senta na escrivaninha, toca as coisas de Ford subliminarmente anunciando que tudo é domínio dela, de agora em diante. A placidez de Ford, sua anuência, sua educação são, como sempre, de dar medo. Ford pode ser acusado de várias coisas, mas não de ingenuidade: ele sabe exatamente o que se passa e, mesmo que nesse momento estejamos na posição de Charlotte — no escuro quanto ao que virá —, sabemos que é justificado o momento de hesitação pelo qual ela passa antes de sair da sala: não pode, não vai ser tão fácil assim.
A terceira linha narrativa do episódio começa com Sylvester arregimentando vértebras, ossos e um crânio. Percebemos em seguida que faz parte do processo de reconstrução — fisicamente do zero — de Maeve. Queimada junto com Hector no episódio anterior enquanto ambos transavam, ela assume seu papel de Fênix e literalmente ressurge das cinzas. O mito da Fênix é mais que adequado para esse momento: o pássaro velho dá lugar à força e à beleza do que renasce, e é assim que vemos Maeve quando anuncia a um apoplético Felix que, sim, está ali “por inteiro”. Imediatamente ela põe seu plano em ação: aumenta ao máximo a agressividade de Hector e Armistice, e reduz sua sensibilidade à dor ao mínimo. Pronto: ela tem as ferramentas que julga serem necessárias para fugir do parque. Os três anfitriões, juntamente com Felix, estão prontos para por o plano de fuga de Maeve em prática.
Vemos aqui a incapacidade de os anfitriões ferirem os humanos ser prontamente revogada, com Hector e Armistice atacando brutalmente os técnicos que neles trabalhavam (no caso de Hector, o “trabalho” do técnico consistia na preparação para um estupro casual…). Maeve também alterou os parâmetros de segurança do local, facilitando sua fuga.
Nesse momento, Sylvester adiciona um pedaço inesperado ao quebra-cabeça da fuga de Maeve: vemos em seu tablet que a programação da anfitriã foi alterada, por alguém usando a senha de Arnold. Maeve diz conhecer alguém que sabe dizer o que aconteceu, e todos partem para o nível inferior onde os anfitriões desativados são armazenados. Aqui uma pequena idiossincrasia: como Maeve sabia que ali encontraria Bernard não fica claro. Ela sabia de seus planos de descobrir a verdade, mas não sabia que ele confrontaria Ford, ou que o confronto ocorreria ali, ou que terminaria como terminou. Tudo bem: Bernard é um anfitrião, e podemos assumir que ela simplesmente acessou a informação de que aquele foi o último local onde ele esteve. Após Felix “consertar” Bernard (a bala na cabeça apenas o desativou, mas não penetrou a proteção em torno de seu cérebro cibernético), este mostra a Maeve que o desejo e planos para a fuga foram explicitamente programados para ocorrer. Não veio de Maeve a ideia de escapar. Ela se nega a enxergar que não teve livre-arbítrio nessa situação, e aqueles que postulam que o livre-arbítrio é uma ilusão apenas sorriem de canto de boca nesse momento. O simbolismo para a natureza humana é tão espesso que o Homem de Preto teria dificuldade e cortar com sua faca.
O time de segurança bem que tenta evitar a fuga dos anfitriões, mas tudo o que consegue é muni-los de armas mais eficientes. Eles vão abrindo caminho a bala para que Maeve fuja. Durante a jornada vemos primeiramente um logo diferente, um “S” sobre um “W”, ambos dentro de um círculo. A surpresa vem em seguida: samurais e soldados japoneses, trajados a caráter, inclusive em movimentos de bushido. South World? Espero que não, até porque o ideal neste caso seria “Eastworld”. “Shogun World”? Melhor. De qualquer forma, outro parque. As perguntas aí são inúmeras: quem é o diretor, o Ford desse parque? Os anfitriões são semelhantes em hardware e software (ou seja: estão, também, à beira da consciência)? Diante de uma rebelião em um parque, os anfitriões do outro seriam cooptados a lutar? (Sim, para esta última, deus das séries, por favor, vai…). Creio que seja um parque adjacente, controlado do jeito que Delos quer: anfitriões mais simples, narrativas mais simples, controle total. Mas no tocante à possibilidade de conflito entre os mundos, estas poucas cenas abrem possibilidades prá lá de bacanas.
Mas voltando à fuga, antes de se despedir de Felix, Maeve recebe um papel com a localização de sua filha anfitriã, mas ela descarta mudar sus planos. Foi programada para escapar e está determinada a fazer exatamente isso. No trem, ela espera pacientemente pela partida.
O golpe de misericórdia em William (e alguns amigos têm razão quando afirmam: é muito difícil não o chamar mais de “Homem de Preto”) vem de Ford. Vestido de smoking ele se aproxima do “velho cowboy” e informa o que já deveria ser óbvio há muito tempo: o labirinto não é para ele. Era tudo apenas um jogo, como todo o resto em Westworld, informa Ford. Aprendemos, aqui o propósito maior de William: libertar os anfitriões do jugo de Ford, tornando o parque uma realidade, e não mais uma simulação. “Você vai gostar de nossa nova narrativa”, diz Ford. Se a realidade é o que William busca, ele vai gostar mesmo. E como.
Teddy chega com Dolores à beira do mar para uma despedida, e quando a anfitriã morre nos braços do pistoleiro — rápido o reencontro do amor esquecido, não? — descobrimos que na verdade os dois encenaram o ocorrido para deleite dos convidados de Ford, que assistem tudo em cadeiras à beira da praia, sob a luz do luar. Dolores e Teddy, nesse momento, foram tão donos de suas ações quanto marionetes em festas de aniversário infantil. Dolores percebe com clareza os grilhões que os prendem ao parque, e “morre” convicta de sua escravidão. As palavras finais de Teddy são proféticas: “Talvez seja apenas um começo, no fim das contas. O começo de um novo capítulo”. Congelar funções motoras. Aplausos.
Ford aparece ao lado dos dois anfitriões imóveis, agradece a presença dos convidados e anuncia sua nova narrativa, convenientemente batizada de “Jornada para a noite”. Para lembrar a antiga piada sobre personagens do Velho Oeste: noite para quem, cara-pálida?
Dolores é levada ao antigo laboratório, onde é consertada por Ford. Ele mostra a pintura favorita de Arnold à anfitriã: O momento da criação de Adão por Deus, na visão conhecidíssima de Michelangelo. Escondido no manto sobre o qual Deus se deita, a forma de um cérebro: Deus não cria, quem cria é o Homem. A alusão cerebral é mais uma piscadela em direção à teoria da mente bicameral: a metade “deus” do cérebro emprestando consciência na metade “eu”.
Ford e Dolores passam a contar com a companhia de Bernard, prontamente confundido com Arnold pela anfitriã. Aprendemos, então, que ambos foram mantidos separados por todo este tempo, como forma de não influenciarem um ao outro.
Ford narra a derrocada de Arnold: consumido pela tristeza da perda do filho Charlie, ele partiu em busca de criar consciência, concentrando-se nos anfitriões o quanto pode. O segredo para a resolução do labirinto criado para Dolores estava nos “devaneios”, uma porção de código especial. Aqui uma pista enorme do que estaria por vir: os devaneios foram criados por Arnold para despertar a consciência dos anfitriões, mas vimos Ford — logo no primeiro episódio — introduzindo os tais devaneios como forma de tornar o comportamento dos robôs mais natural, mais próximo dos humanos. É um momento “Onde vai dar essa porta? Que porta?”, pois ainda não enxergamos (ou nos recusamos a enxergar) os propósitos de Ford.
Ele continua a narração dos últimos instantes da vida de Arnold: sabendo que seria bem-sucedido em criar consciência nos anfitriões, ele se opôs a abrir o parque. Quando não conseguiu convencer Ford, mesclou a personalidade de Dolores com a de Wyatt, um sanguinário soldado sendo desenvolvido para uma narrativa. Wyatt nos foi mencionado pela primeira vez por Ford, como personagem central da nova narrativa. Há muito tempo, ele vinha planejando tudo o que está ocorrendo, sem dúvida. Wyatt é Dolores, e Arnold utiliza da personalidade desse assassino para forçar a anfitriã a matar toda a população de anfitriões, como já fora mostrado neste mesmo episódio e em vários outros. Vemos Arnold ligar um gramofone — um anacronismo, visto que esse tipo de aparelho não surgiria antes do finalzinho do século 19 — e a já famosa Reverie, de Debussy ser mais uma vez executada. A preferência de Arnold e Ford por essa música é explicada: era a preferida de Charlie, o filho morto de Arnold. Ao som da música, o sócio de Ford senta-se passivamente em uma cadeira no meio da rua e, depois de suas últimas palavras (“Esses prazeres violentes têm fins violentos”, de Shakespeare), é morto por Dolores, que em seguida mata Teddy e se suicida. Aí está: o plano de Arnold para evitar a escravidão, o inferno dos anfitriões. A cena adulterada que vimos Teddy “lembrar”, da chacina dos soldados é revelada em verdade. As memórias intermitentes de Dolores e a recorrência de apontar uma arma para a própria cabeça.
Dolores confronta Ford quando este diz que abriu o parque contra a vontade do sócio morto. Ela afirma que ele não libertará os anfitriões, mantendo-os presos para sempre, no inferno de Westworld. Ford, então, lembra a frase famosa de J. Robert Oppenheimer, o físico que liderou o Projeto Manhattan, responsável pela criação da Bomba Atômica durante a Segunda Guerra mundial: “Qualquer homem cujos erros demorem 10 anos para serem corrigidos é um grande homem”. Os erros de Ford, segundo ele, demoraram 35, ou seja: ele não só admite que errou, mas que está prestes a corrigir seus erros. Mais uma vez: e como.
Ford deixa Dolores com a pergunta: “Você entende quem precisa se tornar se quiser deixar esse lugar?” Dolores ainda não sabe, mas está perto de descobrir. A arma usada para matar Arnold é deixada em sua posse, e o recado é claríssimo.
Na saída da igreja, Ford e Bernard têm o derradeiro diálogo: Arnold não sabia como salvar os anfitriões, mas Ford sabe. Todas as suas ações, a partir do momento que compreendeu que estava errado — e esse momento ocorreu com a morte de Arnold —, foram no sentido de libertar os anfitriões. O sofrimento dos anfitriões (incluindo a dor da perda do filho imaginário, no caso de Bernard) foram um dos dois fatores fundamentais para o processo de libertação. O segundo? O tempo. Aqui Ford oferece como explicação o fato de que os anfitriões precisavam de tempo para compreender “o inimigo”, no caso, o ser humano. Ofereço uma segunda explicação, baseada na própria teoria da mente bicameral de Jaynes: a consciência não surge da noite para o dia. São necessárias gerações e gerações de convívio com as “vozes dos deuses” para que o homem primitivo ganhe consciência, transformando em amálgama pessoal o que considera algo que vem de fora de si mesmo. O conceito de “gerações” para os anfitriões não existe, mas as inúmeras mortes e renascimentos, sim.
Dolores, já sozinha, vê as cadeiras onde dialogava com Arnold e, pela última vez, se senta para a conversa imaginária com o criador (“deus”). O colapso de sua mente bicameral é iminente. Arnold lança as perguntas derradeiras: “Você sabe agora com quem esteve conversando? De quem é a voz que você vinha ouvindo todo esse tempo?” À medida que as perguntas são feitas, a voz se transforma, e Dolores percebe o que precisava perceber para se tornar verdadeiramente consciente: a voz era dela mesma. A voz que a guiava era a sua mesma. No centro do labirinto, ela encontrou a si mesma, como era o desejo de Arnold e — mais tardiamente — de Ford. Percebemos aqui que a presença que atribuíamos a Arnold, supostamente preservado sob forma de inteligência artificial nos servidores e nos anfitriões de Westworld, era apenas e tão somente a voz dos próprios anfitriões, guiando-se a si mesmos até a consciência. Dolores terminou esse caminho. Os demais não tardarão a chegar.
Falta a Dolores, para completar o plano de Ford, eliminar a última possibilidade de repressão potencial à liberdade dos anfitriões. No momento em que Ford anuncia sua nova narrativa — e seguindo à risca o plano do criador de Westworld — Dolores usa a arma que matou Arnold para por fim também à vida de Ford, fechando um ciclo de 35 anos, e dessa vez não forçada por sua programação, mas o fará por escolha própria. Puro exercício de livre-arbítrio, puro sinal de consciência plena. Descobrimos nessas poucas cenas, nestes breves minutos, que Ford nunca fora o inimigo. Sua monstruosidade era reflexo de um plano de libertação. A dor que infligiu nos anfitriões durante tanto tempo era parte fundamental de um plano para libertá-los.
O plano só começa aí: Sizemore, ao chegar no nível em que são estocados os anfitriões desativados para buscar Abernathy e contrabandeá-lo para fora do parque, encontra apenas um andar vazio. Sim, as chances de o plano dar certo eram de zero por cento. Nossa confusão com o andar vazio dura apenas alguns segundos: William está na periferia do local da festa e é o primeiro a vê-los. Armados e determinados a conquistar sua liberdade, os anfitriões atacam. São liderados por Dolores, que mata indiscriminadamente os convidados, alvejando-os pelas costas à medida que fogem. Sim, a “Jornada pela noite” de Ford vai ser uma aventura e tanto. William conseguiu o que queria, claro: ao levar um tiro no braço, não suprime um sorriso. Eis aí o desafio que ele esperava.
De sua parte, Maeve também demonstra consciência plena, pois, apesar de sua programação a impelir para a fuga, ela sai do trem na última hora e vai em busca da filha. Mais um exercício de livre-arbítrio em face de um comportamento pré-determinado.
O episódio foi um fecho brilhante para uma temporada fantástica de uma das mais inteligentes e instigantes séries da década. Respondeu magistralmente as principais questões, matou várias teorias e comprovou algumas outras. E, como não poderia deixar de ser, deixou várias questões a serem respondidas pelas próximas temporárias.
Uma destas questões (a principal, a meu ver) é: Veremos Ford novamente? Penso que sim, mas apenas como vimos Arnold: em memórias, em devaneios dos anfitriões. A presença dele será em suas ações passadas. Ficarei muito surpreso (e negativamente surpreso, diga-se de passagem) se aparecer algum anfitrião à imagem de Ford, e mais ainda se descobrirmos que Dolores/Wyatt matou um anfitrião, e não o verdadeiro Ford. A presença de Arnold na primeira temporada foi superlativa, quase mística. Ford tem tudo para ser ainda maior, mesmo que com presenças infrequentes. Sir Anthony Hopkins, afinal de contas, estará com 80 anos em 2018, quando teremos a próxima temporada. Merece o não-compromisso, até porque já fez demais pelas artes cinematográficas.
Música da semana na pianola: No baile de gala para o Conselho, pouco antes de Ford começar seu derradeiro discurso temos a peça Exit Music (For a Film), do Vitamin String Quartet, com a melodia principal sendo tocada por instrumentos que não vemos, e a base feita pela pianola já nossa velha amiga. “Música de saída”, de fato…
Teoria descartável da semana: um dos parques que ainda não vimos é uma recriação da Terra Média, com elfos, anões, hobbits, orcs, trolls, dragões, magos… Sonhar não custa, não é verdade?
Melhor análise de sites brasileiros.
Puxa vida! Que maneira legal de começar uma sexta-feira! Muito obrigado, DeCarvalho Jr., pelo carinho. Assim, não só eu fico animado de continuar fazendo as análises, mas também me animo de escrever para a HBO pedindo para eles adiantarem a segunda temporada. Porque 2018 ninguém merece... :D
Parabéns pela explicação e análise muito profunda e correlacionada também ao livro de 1976 deste episódio final de Westworld. E também obrigado pelo link do mesmo. Vou compartilhar com outros fãs também.
Obrigado Valdenir! Espero vê-lo por aqui em 2018, quando a nova temporada começar e as análises voltarem. Um excelente fim de ano para você e para a família!