A contracultura norte-americana deu origem ao movimento psicodélico, que por sua vez deu origem ao Rock Progressivo. Este estilo musical complexo, que unia o rock com elementos melódicos e rítmicos da música erudita, foi abraçado e desenvolvido com maestria não por bandas americanas, mas por suas irmãs europeias, em especial pelas britânicas. King Crimson, Genesis, Pink Floyd, Yes, Jethro Tull e Emerson, Lake & Palmer, para ficarmos nas mais conhecidas. O Rock progressivo estendeu ao estado da arte as melodias longas e complexas, o uso de sintetizadores, a virtuosidade nos instrumentos. Também adicionou um elemento de fantasia na música, totalmente em sincronia com o psicodelismo e com a expansão de consciência – muitas vezes com o uso de substâncias psicotrópicas — a que os jovens do fim dos anos 1960 eram tão afeitos. Mas, não, esse não é um texto sobre psicodélica, rock progressivo ou psicotrópicos.
Esse status quo musical era vivido na Inglaterra no início dos anos 1970, contrastando sobremaneira com a realidade socioeconômica do país. A ascensão dos EUA como locomotiva econômica do planeta, a Guerra Fria, e o declínio do Império Britânico — onde, outrora, o Sol nunca se punha — deixou na Inglaterra um ambiente de crise pós-industrial, em que os empregos locais evaporavam à medida que migravam para outros países em desenvolvimento. A muitos jovens da época o contraste entre a música rica e melódica do rock progressivo e a falta de perspectivas para o futuro não passou despercebido, e não demorou a gerar a revolta tão peculiar às gerações em ascensão. Inspirados pelo som básico, cru e dissonante dos americanos The Stooges e New York Dolls, surgiu o movimento Punk, um grito de “basta” que ecoaria por todo o mundo. Os Sex Pistols carregariam o estandarte desse estilo, compensando a falta de dotes musicais com uma raiva visceral que fazia eco em quase todo jovem inglês daquela época. Mas, não, esse também não é um texto sobre o declínio industrial inglês, sobre o movimento Punk, ou sobre os Sex Pistols.
Em 04 de junho de 1976, poucos meses após sua formação, os Sex Pistols fizeram sua primeira apresentação na cidade de Manchester, no norte da Inglaterra (sim, essa mesma onde o atentado terrorista no show de Ariana Grande ocorreu, em maio de 2017). Naquele momento, Manchester era assolada pela crise econômica. Industrial por vocação, a cidade via a maioria de suas fábricas fechando as portas, e o show do Sex Pistols era visto como um oásis em meio a um deserto de perspectivas. Ainda assim, naquele primeiro show no Lesser Free Trade Hall, havia apenas 42 atendentes. Entre eles, o jovem jornalista Tony Wilson, que mais tarde seria um dos principais nomes da cena cultural inglesa. Mas o que importa é que quatro jovens que assistiram ávidos ao show dos Sex Pistols, e que definiram, ali, naquele lugar e naquele momento, que era exatamente aquilo que queriam fazer pelo resto da vida. Ian Curtis, Peter Hook, Bernard Sumner e Stephen Morris (que veio depois).. Apesar de se atribuírem o nome inicial de Warsaw, eles ficariam conhecidos pelo nome que tardiamente os consagrou: Joy Division. Sim, esse é um texto sobre o Joy Division.
Joy Division, aliás, é um nome que descrevia o grupo de prisioneiras nos campos de concentração nazistas, responsáveis por satisfazer sexualmente os soldados da Gestapo no livro House Dolls. Apesar de não serem nazistas e de não terem nenhuma afiliação política, foram duramente criticados por conta do nome escolhido. Aliás, o flerte com o nazismo era comum na época. Os próprios Sex Pistols não se omitiam de imprimir suásticas em seus pôsteres, e bordá-las em suas jaquetas. Para os fãs não importava: o que interessava era o som, cru e destilado de pura raiva contra o sistema.
É importante observar que foi justamente a crueza do som dos Sex Pistols que mostrou àqueles quatro jovens que poderiam aspirar ao sucesso. Não só pela revolta do Punk, mas sobretudo porque os membros do Sex Pistols não eram lá muito bem-dotados musicalmente falando. Como diria mais tarde Peter Hook, o baixista da banda em sua biografia do Joy Division Unknown Pleasures, aspirar ao Led Zeppelin era impossível, pois músicos Jimmy Page, Robert Plant, John Paul Jones e John Bonham eram vistos mais como deuses que como artistas. Mas Johnny Rotten e Sid Vicious eram gente comum, músicos que mal sabiam tocar, mas que eram ouvidos avidamente por legiões de fãs.
No dia seguinte, como Bernard Sumner já tinha uma guitarra, Peter Hook comprou um baixo, e eles convidaram Ian Curtis para os vocais e, pouco tempo depois, Stephen Morris para a bateria.
Quando, nos dias de hoje, observamos a quantidade absurda de bandas de indie rock, rock gótico, rock alternativo e vários outros estilos que foram e são influenciadas pelo Joy Division, pouco nos damos conta de como essa banda foi pequena quando comparada à sua influência. Não foi musicalmente pequena, claro. Não, musicalmente eles foram gigantes, apesar de sua formação musical praticamente inexistente. Diferentemente das bandas do rock progressivo, ou mesmo do rock’n’roll da época, nenhum dos quatro componentes teve formação musical erudita. Não tiveram formação musical nenhuma, aliás. Mas foram geniais. Sem o ônus de um estilo de formação, puderam se inventar como quiseram. E com um letrista de primeira qualidade como Curtis, combinavam um som diferente, inovador e rítmico, com letras profundas e que ressoavam com a angústia da época. Ainda assim, foram uma banda pequena, quase amadora.
Pequena porque não fizeram nem 1% do sucesso que outras bandas —muito inferiores a eles, diga-se de passagem — foram capazes de atingir. Novamente é Peter Hook quem conta: os quatro tinham empregos diurnos dos quais não podiam largar, pois os ganhos dos shows mal davam para pagar as despesas. Eles faziam shows quase todos os dias da semana, e algumas vezes tocavam matinê e noite no mesmo local. Eram eles que carregavam o equipamento musical, que era transportado na van de Hook. Se (quando) a van quebrava, ninguém tinha dinheiro para o conserto.
Gravaram seu primeiro EP em 1978 (um EP era mais que um “single” e menos que um LP), chamado An Ideal for Living, com quatro canções. Até nisso se ferraram. O formato EP era ideal para duas músicas, apenas, e a gravação de quatro fez com que a qualidade ficasse muito ruim. Ian Curtis havia tomado 400 libras emprestadas no banco, justificando a Deborah, sua esposa, que era para comprar móveis. Ficou com a dívida e com os discos que nenhuma loja queria consignar. Ah, e não ajudou em nada terem escolhido um jovem da juventude nazista tocando um tambor para colocar como capa.
Capa original do EP An Ideal for Living
Foi mais ou menos nesta época — como se já não tivessem problemas o suficiente — que a epilepsia de Ian Curtis começou a se manifestar. O estresse dos shows, as luzes estroboscópicas, o emprego diurno, um filho a caminho, e o sucesso que teimava em não vir, começaram a fazer efeito sobre o líder e vocalista da banda. Aqui os relatos divergem. Em sua biografia da banda, Peter Hook conta que Ian Curtis sofria, mas assegurava a todos que tudo estava bem, mostrando-se alegre e participativo na banda. Já na biografia Touching From a Distance, da esposa dele, Deborah Curtis, era evidente o sofrimento do cantor, que se afastava emocionalmente de todos e escrevia letras cada vez mais sombrias.
As duas biografias aqui citadas, aliás, devem ser tomadas como leitura obrigatória por qualquer um que queira entender melhor o Joy Division. Peter Hook, o baixista e autor da biografia Unknown Pleasures, era um jovem solteiro e de classe média baixa, trabalhando em um emprego subalterno quando começou a banda. Era pouco estudado e de pouca cultura. Um jovem de Manchester que sonhava, sobretudo, em fugir à sua condição. O que se vê ao longo do livro é alguém com talento, mas que não escapava aos traços da idade: alienado, brincalhão, mais ligado nas peças a serem pregadas nas outras bandas do que na condição em franca deterioração de um amigo íntimo. É visível o remorso dele ao longo das páginas por não perceber que seu amigo Ian Curtis estava, literalmente, definhando.
Já a biografia escrita por Deborah Curtis é mais amarga, menos ligada no dia-a-dia da banda, mais crítica dos efeitos do contato — e da falta de — com Ian Curtis. Eles se casaram quando o jovem tinha apenas 19 anos de idade, e ela, 18. Para sustentar a família, Ian Curtis trabalhava em uma agência municipal de recolocação, e o Joy Division era seu projeto noturno. Quando a banda começou a fazer pequenas turnês, primeiramente pela Inglaterra, e depois pela Europa, o relacionamento ficou ainda mais desgastado. Ian Curtis se dividia entre ser um jovem em busca do sucesso e um homem de família, com responsabilidades e contas a pagar. E as contas acumulavam.
Outros dois trabalhos que retratam a cena musical de Manchester no fim da década de setenta, em geral e o Joy Division em particular são os filmes 24 Hour Party People (A Festa Nunca Termina), de 2002 e Control, de 2007. O primeiro conta a história de Tony Wilson, o jornalista transformado em produtor musical por conta das bandas que surgiram na região a partir do primeiro show dos Sex Pistols em 1976. O segundo conta a história de Ian Curtis e do Joy Division. Ambos são fundamentais para se entender a época e os problemas pelos quais o a banda passou, bem como para conhecer o cotidiano duríssimo deles.
As dificuldades financeiras só começaram a se desfazer quando a banda contratou Rob Gretton como gerente, pois o jovem executivo da música sabia como conseguir mais e melhores shows.
Foi ele, também, quem facilitou a gravação do primeiro LP da Banda, Unknown Pleasures. Esse é um trabalho antológico não apenas do Joy Division, mas da música contemporânea. Com uma bateria que não tem nenhum equivalente na música atual (ou daquela época), um baixo que faz a linha melódica principal, uma guitarra ácida que dá o tom pós-punk às músicas, e letras refinadas e melancólicas, Unknown Pleasures influencia bandas de rock até os dias de hoje, e não é para menos. Ainda assim: mesmo fazendo mais shows e com um LP antológico em seu currículo, o sucesso insistia em não chegar, apesar de eles já conseguirem pagar as contas. Atingiram um patamar um pouco melhor financeiramente, mas não conseguiam largar seus empregos diurnos. Essa aliás, é uma boa medida das dificuldades enfrentadas pelo Joy Division: eles só conseguiram largar seus empregos e viver do dinheiro gerado por sua música nos meses finais de existência da banda. E quando “estouraram”, a banda já não existia havia um bom tempo.
Outro elemento interessante (e triste): a capa de Unknown Pleasures é uma das mais belas e conhecidas da história da música pop. O guitarrista Bernard Sumner havia visto um diagrama de emissões eletromagnéticas de um pulsar — uma estrela em deterioração — em uma enciclopédia de astronomia, e mostrou o desenho para o artista Peter Saville, amigo da banda. O gráfico de Saville com o nome da banda na parte superior, e o título do LP na parte inferior tornou-se uma das imagens mais pirateadas de todos os tempos. Tanto que, mesmo sem ter produzido sequer uma camiseta e, por consequência, sem ter visto um centavo em vendas dessas camisetas, a banda teve que pagar imposto para o governo britânico, incapaz de convencer o pessoal do imposto de renda de que nada tinha a ver com a imagem pirateada sendo comercializada. Nos EUA, onde a banda não era conhecida, mas a camiseta era popular, surgiu a piada de que Unknown Pleasures era o melhor disco de todos os tempos já gravado por uma camiseta.
Capa original do LP Unknown Pleasures
Na biografia de Peter Hook, ao final de cada parte, o baixista nos apresenta uma linha do tempo, com as atividades da banda no período de tempo correspondente. É ali que vemos o quanto o Joy Division se empenhava. Shows quase todos os dias da semana, com hiatos apenas nos períodos em que Ian Curtis ficava afastado do palco por conta de sua epilepsia. Com o passar do tempo, os incidentes iam aumentando em volume e intensidade, mas os jovens músicos acreditavam quando Curtis lhes garantia que tudo estava bem.
Em 1979, o Joy Division voltou ao estúdio para gravar Closer, que viria a ser seu último disco. O uso de sintetizadores e de tempos musicais inusitados faz com que esse disco seja uma fonte de inspiração para bandas em busca de um som diferente até os dias de hoje.
Capa original do LP Closer
Aqui vale um parêntese importante: não há como descrever o som do Joy Division sem ser pueril, e sem ficar muito aquém do conjunto profundo de sentimentos que a música da banda provoca em que ouve com a alma. São discos e singles que devem ser ouvidos em silêncio, em solidão, no conforto de uma cama, com a porta do quarto fechada e os canais mentais e emocionais abertos. Só nessa situação é possível perceber que no cadinho de dificuldade que era o cotidiano da banda foi forjado algo de divino, de angelical, de brutalmente significativo. Algo que transcende a música e define uma pequena porção muito triste, mas muito linda da natureza humana. Ninguém deveria passar pela vida sem imprimir esse sentimento no fundo do coração. Até porque o que fica é a sensação de que, por mais difícil que seja a vida, vale a pena vivê-la se uma vez a cada 20 ou 30 anos, vamos encontrar com algo do calibre de Joy Division.
A banda gravou, além dos dois LPs e do EP, três singles de muito sucesso. Em 1978, gravariam Transmission, uma balada agressiva e dançante que lhes deu modesta projeção nacional quando apresentada no programa de música Something Else, na BBC. A dança de “borboleta capturada”, de Ian Curtis era sua marca registrada. No início de 1980, a banda gravaria Atmosphere, uma canção introspectiva e lenta, refletindo o estado depressivo de Ian Curtis. A banda já se encontrava “na estrada”, fazendo shows pela Europa, e esse single foi gravado na França. Por fim, apenas algumas semanas antes do suicídio de ian Curtis, o Joy Division gravou a canção que seria sua mais conhecida e tocada: Love Will Tear Us Apart, em março de 1980.
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No fim de 1979 e início de 1980, a banda fez sua turnê por alguns países da Europa, e Ian Curtis adicionou mais um elemento ao seu drama pessoal: envolveu-se com a jornalista belga Annik Honnoré. Aqui, também, as descrições de Peter Hook diferem do relato de Deborah Curtis. Para o baixista da banda, os dois eram apenas amigos e, em função do estado de saúde de Curtis e da quantidade de remédios que ele ingeria para se manter funcional, não havia como os dois terem uma relação romântica. Já para Deborah Curtis, o caso era explícito, e ela iniciou procedimentos para se divorciar do cantor.
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O divórcio pendente, a situação de saúde em deterioração, e uma depressão crônica tornaram o peso da vida insuportável para Ian Curtis. A banda se preparava para, finalmente, fazer sucesso, com uma turnê planejada para os EUA em maio de 1980. No dia 18 de maio, porém — véspera da viagem para a América — Ian Curtis enforcou-se em sua cozinha. As descrições do que esse momento significou para seus familiares e amigos é de cortar o coração, obviamente. O jovem tinha apenas 23 anos e estava à beira de se tornar um ídolo mundial. Ao invés disso, tornou-se uma lenda, um anjo de asas quebradas, incapaz de reconhecer a própria grandeza ou de encarar os próprios e gritantes defeitos.
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Os demais membros da banda, ainda jovens, ainda com muitos sonhos de sucesso, não demoraram a retornar aos palcos, já sob a nova égide: morria o Joy Division, mas nascia o New Order. Durante os dois primeiros LPs dessa nova fase, até tentaram manter acesa a chama de Ian Curtis nas canções e produções. Mas, em pouco tempo, a cena musical de Manchester mudaria, e da acidez do pós-punk surgiria o movimento Dance e da New Wave, que definiria a década de 1980, então em seu começo. O próprio New Order encabeçaria essa mudança e, em poucos anos, o Joy Division cristalizou-se como um fenômeno único no cenário musical. Um Olimpo a ser sonhado, mas não mais repetido ou atingido. O New Order foi o primeiro “filho”, do Joy Division, um filho que momentaneamente brilhou mais que o pai, e ainda assim jamais saiu de sua sombra.
Mas, não, esse não é um texto sobre o New Order.
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