A torneira pingava de forma insistente, num tom melancólico, matemático e irritante. Noite calada por uma leitura leve para acalmar a mente, que havia bailado salsa durante todo o dia, de forma incansável e descontrolada. Por um momento, parei a leitura e lembrei-me do péssimo hábito que tinha, de fazer listas de coisas a resolver na vida, justamente no momento em que colocava a cabeça no travesseiro. É como se eu ativasse um monstro todas as noites para que ele não me deixasse dormir em paz. Fiz isso durante muitos anos, o que me permitia dizer que adorava acordar tarde, dormir tarde. O fato é que eu tinha dificuldades para parar de pensar e conseguir simplesmente dormir. Era um pensamento acelerado, perturbador, que me fazia crer que mais um dia havia terminado e eu ainda não havia resolvido nem a metade das coisas que queria, sonhava, desejava. Uma ansiedade, sem propósito, criada, magistralmente, por mim. Um dia, cansei e decidi que queria mudar. Parece muito simples, não? E é.
Evidente que a mudança de hábito, de qualquer natureza, não acontece da noite para o dia. É um processo de dentro para fora, como qualquer tipo de mudança. Cada um tem seu tempo particular para isso acontecer e está tudo bem. Requer reconhecer o que se faz, acolher, ter vontade de mudar, buscar ferramentas e trabalhar naquilo dia após dia. Pode-se dizer que são exercícios diários, constantes, cujo resultado, aos poucos, é sentido e os comportamentos aprimorados naturalmente. Pelo menos funciona assim para mim. Gosto muito de meditação, oração e exercícios que me mantenham no presente. Isso ajuda a manter um bilhete em meu coração com os dizeres: ou controlo minha mente ou ela me controla.
O ruído da torneira a pingar naquela melodia chata me trouxe de volta à realidade. Já com a mente mais tranquila, resolvi descansar. Coloquei a cabeça no travesseiro e talvez tenha ficado em um estado de quase sono profundo, se é que isso existe, não sei. Tive um sonho, muito real, daqueles de você sentir cheiro e toque, sabe? Uma senhora vestida de branco sentava ao pé da cama, sorria e me chamava para conversar. Tinha rosas brancas nas mãos. Ela não falou muito, mas o suficiente para me trazer a uma nova vida. Tinha um olhar tenro, doce e firme ao mesmo tempo. Daquelas pessoas que impõe sua presença apenas pelo que é. Esses seres não chegam, eles acontecem. Um sorriso que emanava uma tranquilidade bela, mãos macias e delicadas. As rosas tinham cheiro de alfazema, que adoro. Trocamos olhares por um tempo profundo, não sei se isso se mede. De repente, o sorriso largo se fez e ela me disse: “A formosura toda está dentro de você. Se olhar para ela, vai conseguir enxergar tudo de formoso que já tem. As bênçãos são silenciosas, sutis e gentis. Se perceba para conseguir percebê-las. Fique em paz.” Entregou-me as rosas, abraçou-me, beijou-me a testa e se foi.
Acordei e senti o cheiro da alfazema em mim. Saltei da cama e fui procurar aquela senhora pela casa. Que vontade daquele abraço mais uma vez, que vontade de sentir sua presença por mais tempo. Foi quando me dei conta de que era um sonho apenas. Ou não, vai saber. O fato é que esse acontecimento me fez perder o sono naquele momento, preparar um chá de cidreira e sentar no silêncio despretensioso do sofá acolhedor. A cada gole do chá, um insight, um sorriso, lágrimas de emoção. Talvez tenha sido a primeira noite em que eu não conseguia pensar, só sentir realmente. Uma gratidão macia, intensa e divertida. De alguma maneira, quando despertei, não acordei somente do sono em que estava. Acordei com novos olhos e, em consequência, despertei do sono da vida.
Não sei quanto tempo fiquei ali sentada, sentindo e escrevendo sobre aquilo tudo. Talvez tenha sido até terminar o chá. Fechei meu moleskine de anotações noturnas, abandonei a xícara vazia sobre a mesa. Voltei para a cama, deitei, fechei os olhos e nunca mais dormi meus sentidos.
Todas as noites, desde aquele dia, eu me deito e faço uma lista das coisas pelas quais sou grata. A mesma sensação macia me preenche e durmo um sono reparador e justo. Vez ou outra, encontro aquela senhora por aí. O mesmo abraço, a mesma presença, a mesma paz.
É isso e é só.
Oi Daniela. Sabe, o processo não é simples, simples assim. :) Porém, dizer que é difícil tbm não facilita o caminho, então tá, é simples. Basta persistência, adentrar-se em si, criar novos hábitos, verdadeiramente amar o presente e ser grato pelo que, simplesmente, é. Simplérrimo. :) Sou cético, mas existem mistérios, coisas intangíveis ao meu conhecimento atual, ao lado lógico que requer provas. Outro dia sonhei com Jesus e ele ma dava a mão. Sim, o Jesus "comum", vestido de branco e acho que podia ser eu. Eu me dando a mão. Fica a pergunta. Refugiados, os com fome, mulheres sob violência ou as crianças em trabalho infantil, veem senhoras de branco, veem Jesus?
Olá, Jaylei! Não acho simples, nem difícil, apenas possível. Com certeza Jesus podia ser você mesmo. Acredito que todos somos Um, portanto, completamente plausível. Sobre sua pergunta se refugiados, mulheres sob violência ou crianças com fome,se veem Jesus ou senhoras de branco: em nenhum momento me referi no texto sobre isso ser privilégio de uns e outros, muito pelo contrário. A Espiritualidade independe de classe social ou condições de vida, falo de fé e cada um tem a sua, bem como sua forma de ver a respeito. Lembrando que ser cético também pode ser uma forma de fé. E ok para todas. E talvez eles sejam também Jesus e a senhora de branco, afinal todos somos,não é mesmo? Grande abraço!