É do jurista Louis Brandeis uma frase célebre: “A luz do sol é o melhor desinfetante.” Em que pese ele se referir à necessidade de transparência com vistas a se preservar a legalidade, trata-se de um pensamento versátil: deixar as coisas bem claras, bem à vista de todos, tem vantagens para além da justiça.
Pode ser perigoso abrir o jogo assim, sem restrições? Sim, pode até ser. Abrir um assunto demais pode ser brincar com fogo e, em alguns casos (segredos de estado; informações médicas que, além de não ajudar podem prejudicar o paciente; dados não verificados), pode ser muito nocivo. Porém, no mais das vezes, pôr as coisas às claras traz muito mais benefício do que malefício.
Em uma questão recente, penso que seja o segundo caso. Refiro-me à série da Netflix Os 13 porquês. Ao ser disponibilizada no último dia 31 de março, essa série recebeu uma saraivada de repreensões por parte de vários profissionais da televisão, da educação e de outras áreas.
A saber, o seriado acompanha o adolescente Clay Jensen, e começa duas semanas após sua amiga (e paixão secreta) Hannah Baker cometer suicídio. Pronto. “Um seriado que fala de suicídio! Como pode?”, dirão (e disseram) os mais pudicos. Mas a coisa não para por aí. Clay descobre uma caixa de sapatos mal embrulhada na porta de sua casa, um dia ao chegar da escola. Dentro, sete fitas cassete (daquelas que a gente não vê mais faz tempo). Em cada lado dessas fitas, Hannah conta a história de um de seus colegas da escola, e de como eles a empurraram para o suicídio.
Só essa temática já bastou para provocar muita gente a uma reação negativa. Eu mesmo, quando fui informado do teor da série pelo confrade Guilherme, torci o nariz. O raciocínio é simples: a moça é articulada a ponto de ter bolado um plano para expor os que julga serem seus algozes, o que é visto como uma “glamourização” do suicídio. A conselheira escolar Alex Johnson, do sistema educacional norte-americano equivalente ao nosso ensino médio, sintetizou de maneira clara a crítica de muitos:
Como conselheira escolar, eu gostaria que este livro e essa série sumissem. Não são nada mais do que a fantasia de suicídio de todo adolescente triste: “eu vou me matar e alcançar glória, atenção e piedade, e todos vão finalmente entender como eu era especial, e quanto eu passei, e eu vou ser bonito(a) e desejável e poderoso(a).” Eles não conseguem, ao mesmo tempo, meter em suas cabeças o fato de que estariam mortos e, portanto, seriam incapazes de realmente experimentar qualquer benefício dessa fantasia, mas isso é um pequeno detalhe. [A série] é indulgente, insalubre, e no pior caso, perigosa.
De fato, quando olhamos para esse lado da série (que é baseada no livro homônimo de Jay Asher), o que vemos é a possibilidade de algum jovem entristecido encontrar respaldo para suas ideias suicidas. Sim, sob esse ponto de vista, a série brinca com fogo.
Só que aí, com vistas a entender melhor o que teria dado na cabeça dos produtores para colocar essa temática na telinha, decidi assistir, para poder julgar com conhecimento de causa. O resultado é que estou recomendando a todo mundo que conheço — você, inclusive — que assista essa série. É um assunto importante demais e é realmente tratado de maneira séria, sem o objetivo de só entreter e muito menos de “glamourizar” o suicídio.
Não, o objetivo maior da série é outro: expor de maneira detalhada como ocorre o bullying.
Minha amiga Betina Bertone — a melhor professora de Física do Hemisfério Sul — uma vez me disse algo, do alto de sua ampla experiência em sala de aula, de que nunca mais me esqueci: “Todo mundo já sofreu bullying e já cometeu bullying pelo menos uma vez na vida.”
Grande verdade. Sofri bullying no começo da adolescência, como muitos de nós. Franzino, óculos fundo-de-garrafa, aparelho dentário extra-oral, tímido, CDF: um prato cheio, em suma. Mas até aí, não é problema. O problema é que também cometi bullying, e até hoje vejo as consequências disso, com vergonha, com pesar. Sei que deixou sequelas e me arrependo profundamente de ter agido assim. Para minha sorte, esse lado sórdido de minha personalidade se tornou consciente para mim e eu o rejeitei com veemência. Tarde demais para os estragos que causei, mas, de novo, para minha sorte, tenho a oportunidade de pelo menos suavizar os efeitos negativos naqueles que ainda permitem o meu convívio.
O fato é que bullying faz parte da nossa vida e é importantíssimo entendermos que ele ocorre não só à nossa volta, mas muitas vezes provocado por nós mesmos.
Aí entra a importância de Os 13 porquês. A história gira em torno do sem-noção e impotente Clay, que revisita, a posteriori, o que aconteceu com Hannah, agora consciente de que a jornada a levaria à ruína. A série é uma autópsia do processo de bullying sofrido pela moça. A cada passo — a cada lado de cada fita cassete — ficamos conhecendo as ações de um de seus algozes, que eram seus próprios colegas e amigos. Um a um vamos entendendo como as ações desses agentes contribuíram para o isolamento e o desespero da moça. Um namorado sem escrúpulos, uma amiga sem consideração, uma colega que prefere inventar uma mentira sobre ela do que admitir uma verdade sobre si mesma, e por aí vai.
A série se desenrola como um manual sobre bullying, analisando com precisão todos os elementos constituintes: o agente, a ação (do começo ao fim), o impacto, a consequência, a reação do agente (geralmente uma desculpa esfarrapada, um dar de ombros, um sorriso perverso de quem descobre com prazer que feriu). Depois do ato derradeiro ter sido consumado por Hannah, o medo, o remorso, a vontade de esquecer de tudo. Infelizmente eles logo percebem que é tão fácil de se esquecer como de um braço amputado sem anestesia.
Na falta de consideração de cada um, temos a oportunidade de enxergar alguma coisa de nós mesmos em algum momento de nossas vidas. É evidente que, nos olhos e nas ações de quem busca um grupo para esconder sua própria perversidade, identificamos alguns daqueles com quem convivemos, a quem demos guarida, também em algum momento.
Não, não vamos nos identificar ou identificar amigos e conhecidos em todos os personagens. Claro que não. Mas é leviano achar que vamos passar incólumes. E é aí que está um dos pontos mais relevantes da série. Ao identificar, na situação fictícia, algo com potencial de compatibilidade em nossas vidas, damo-nos o poder de intervir no curso dos acontecimentos aqui no mundo real. Seja para nós ou para alguém que nos cerca.
Para quem sofre bullying, a série é importante em vários níveis, também. Por um lado, nos primeiros estágios do bullying, o indivíduo não sabe que está sendo vitimado, e a série mostra vários exemplos de “acordes de abertura”. Por outro lado, sabendo que as consequências podem ser trágicas, a vítima de bullying tem a oportunidade de, pelo menos, pedir ajuda. Não é fácil (e a própria série mostra isso em vários momentos), mas muitas vezes o que dificulta é identificar a situação como sendo bullying, e nisso cada capítulo é dolorosamente didático.
Os 13 porquês brinca com fogo, claro. Pode muito bem colocar minhoca na cabeça de algum de nossos queridos desmiolados que esteja fragilizado. Mas confesso que tenho uma fé danada nessa moçada. Teimo em acreditar que eles têm cérebro e efetivamente pensam quando a água bate na bunda (para usar uma expressão da minha adolescência). Por outro lado sei que, se a série brinca com fogo, também põe o bullying em evidência, escancarado para que todos vejam. Bullies, vítimas, observadores, amigos, pais, professores. Enfim, todos se veem retratados e notam como podem fazer mais que seu papel “de praxe”. Percebem que se limitarem suas ações aos papéis designados, estarão contribuindo para o sofrimento de alguém e que, com um “tiquinho” a mais de atenção, podem ajudar a evitar tragédias.
Não, não sou da opinião da conselheira escolar Alex Johnson. Não acredito que esquecer o assunto sirva a algum propósito útil. Pelo contrário, creio que lançar luz (muita, mas muita luz) sobre o bullying — mesmo que seja por meio de uma série de televisão — seja a melhor maneira de ajudar quem esteja sofrendo seus efeitos.
"Não acredito que esquecer o assunto sirva a algum propósito útil. Pelo contrário, creio que lançar luz (muita, mas muita luz) sobre o bullying — mesmo que seja por meio de uma série de televisão — seja a melhor maneira de ajudar quem esteja sofrendo seus efeitos." Exato, bem, ao menos eu acho assim. Como deixar de falar em algo pode melhorar a situação? Não se vai de falar de racismo, homofobia, preconceito racial porque, no fundo, tudo "ajeita-se" ou porque escola não é pra isso? Vejo pessoas reclamarem do mimimi do bullying, afinal, mesmo sofrendo no passado muitos "sobreviveram". Esquecem-se que muitas dores, feridas que são levadas vida adentro, poderiam não ter ocorrido se fosse dada mais atenção a problemas/situações "normais". Abs e bom dia!
Obrigado pela leitura e pelo comentário, Jaylei. Você levanta um ponto que eu tenho visto nesses últimos dias, depois de ter publicado esse artigo: pessoas reclamando do mimimi do bullying, como você coloca. Muita gente olha para a série e culpa a moça pelos problemas que a levaram ao suicídio. Mania besta de culpar a vítima, tão comum em outros casos de violência física ou moral. Quem age assim não entendeu o propósito da série/livro ou do artigo, que é provocar uma reflexão, uma auto-avaliação. Minhas ações afetam os outros, no mais das vezes muito mais do que eu imagino, e se não posso me responsabilizar sobre como reagirão ao meu comportamento, posso, sim, observar conscientemente e adequar meu comportamento para com meu semelhante, seja na escola, no trabalho, ou em qualquer lugar. Que bom que você gostou. boa semana!