À medida que a eleição presidencial norte-americana se encaminha para seu final — pouco mais de um mês no futuro, na data de publicação deste artigo — um aspecto interessante (e brutalmente perigoso) se consolida na psique de parte do eleitorado. Conseguimos ver isso com clareza por lá porque o fenômeno tem sido denunciado com veemência por especialistas e jornalistas mais atentos. Deveria ser entendido com universal, pois uma observação mais atenta mostra sua ocorrëncia no Brasil e, obviamente, em vários locais do mundo. O fenômeno pode ser definido simplisticamente assim: para muitos indivíduos a percepção não só é mais importante que os fatos, mas inapelavelmente preferível e suficiente para a tomada de decisões.
Na eleição presidencial norte-americana este fenômeno se manifesta de forma bastante explícita, mas para entendê-lo devemos voltar um pouco no cenário. Análises macroeconômicas mostram que os EUA conseguiram bons avanços desde a crise mundial iniciada em 2008 e que gerou prejuízos no planeta inteiro até ter seus efeitos neutralizados. O governo de Barack Obama nem de longe é perfeito, mas foi bem-sucedido em estancar a corrosão da economia daquele país, reduziu os níveis de desemprego a 5% no contexto nacional (o menor patamar desde a década de 1990) e passou a oferecer planos de saúde subsidiados ou mesmo gratuitos à população, a primeira vez que um benefício tão grande e tão extenso é oferecido a tanta gente desde a criação do “social security” durante a Grande Depressão no governo de Franklin Roosevelt.
Além disso, grandes avanços foram conseguidos pelas populações de mais baixa renda nos EUA, e avanços sociais voltados às minorias também foram alcançados, como no caso da aprovação do casamento entre homossexuais em vários estados.
Não é difícil enxergar que a situação geral dos norte-americanos melhorou nos níveis econômico e social nos últimos 8 anos, e no entanto, o candidato do partido Republicano, o bilionário Donald Trump garantiu sua nomeação e tem chances reais de chegar à Casa Branca apontando para o suposto caos em que vivem os EUA. Segundo o candidato, os EUA não “ganham” mais nada, e sua plataforma resume-se a uma frase: “make America great again”, ou seja, “tornar os EUA grandes (no sentido de excepcionais) novamente”
Caos? Não ganham mais nada? Tornar os EUA grandes novamente? De onde sai tudo isso?
Em uma entrevista com o ex-governador do Arkansas e ex-candidato a presidente Mike Huckabee presenciei a resposta a estas questões. Perguntado por que tanta insatisfação por parte de uma parcela dos americanos, o governador respondeu algo na linha de “eles não sentem que estão sendo bem tratados pelo governo”. Quando o entrevistador apontou muitos dos números e dados que mencionei acima, mostrando que os fatos não corroboram esta percepção, o governador foi tácito: “mas não é isso que as pessoas sentem”. O entrevistador até tentou argumentar que não seria o mais adequado capitalizar em cima de um sentimento que não tem base na realidade. No entanto, Huckabee foi irredutível: ele apoia o sentimento de seus constituintes.
Esse é o caso que mais deveria nos espantar: mesmo diante de fatos que apontam para uma direção, uma parcela bastante significativa da população (significativa o suficiente, argumenta-se, para dar a presidência a Donald Trump) insiste em seguir na direção contrária.
A explicação, na visão de muitos analistas e pesquisadores do assunto, passa pelo fato de que esta percepção de que tudo está o caos mesmo diante de um quadro favorável se alicerça sobre as rápidas mudanças que vêm acontecendo na sociedade e no mundo. Os americanos que sustentam esta percepção de caos são, em sua maioria, brancos e conservadores. Esta parcela da população viu a ascendência econômica de minorias raciais de um lado, o avanço da igualdade de gêneros (ainda que fique bem aquém do que deveria), e as conquistas dos homossexuais em termos de aceitação social e garantias legais (a que têm tanto direito quanto qualquer cidadão, obviamente). Para estes cidadãos brancos, conservadores e também em muitos casos de baixa educação e baixa diversidade em suas fontes de notícia e opinião, as mudanças foram para pior. Não interessa que estejam ganhando mais, mais bem empregados, com melhores condições em seu país do que tinham, digamos 10 anos atrás. O que conta é a percepção.
A explicação psicossociologia para este comportamento é algo muito acima de minha capacidade, apesar de eu desconfiar que é mais um resultado da combinação da velocidade com que as coisas vêm acontecendo em nosso planeta nestes últimos 50 anos, aliada à tecnologia e à propensão de muitos a pensarem o mínimo possível. Não sei. Posso estar errado também.
O fato é que este quadro se repete não só nos EUA, mas em vários outros locais. Na Grã-Bretanha, recentemente, ocorreu quando a população optou pela saída da União Europeia, impulsionada pelo sentimento de que a presença dos estrangeiros estaria prejudicando o país, enquanto dados concretos apontam para inúmeras vantagens de se permanecer como parte da organização. Os exemplos da percepção sobrepujando a razão são inúmeros e não são nada novos.
E no Brasil?
Puxa, fazemos isso já faz muito tempo, até porque se tem uma coisa a que nossa cultura não é afeita são os números, as estatísticas, os dados.
Crenças e percepções — e, no máximo, dados escolhidos a dedo para corroborarem nossos pontos de vista — dirigem nossas decisões pessoais e coletivas desde que o Brasil é Brasil. E assim chegamos a um ponto em que nossas crenças nos levaram a criar uma falsa dicotomia entre o “liberal” e o “social”, impedindo-nos de enxergar dois pontos fundamentais se queremos mudar a situação de nosso país efetivamente.
Em primeiro lugar somos incapazes de enxergar o que o outro lado da questão tem de meritório. Os sociais não enxergam que o controle da inflação foi um acontecimento que trouxe enormes benefícios para as populações mais necessitadas, pois a inflação comia com mais vigor os ganhos de quem não tinha como se proteger nas aplicações de overnight. Da mesma forma, os liberais não enxergam os enormes benefícios sociais atingidos nos governos do ex-presidente Lula, enquanto mantendo a economia em um caminho de crescimento, de forma tão ou mais competente do que teria sido realizado por qualquer governo liberal. Os sociais, por sua vez se recusam a enxergar a adoção de uma postura fisiologista e corrupta por parte de todos os escalões dos governos Lula e Dilma, escancarando que a postura de “virgem à porta do bordel”, adotada pelo PT não funciona depois de o partido ter passado 12 anos gerenciando o referido bordel. Os partidários de ambos os lados sofrem, como não me canso de dizer, de uma espécie de “Síndrome de Estocolmo”, apaixonados pelos que efetivamente são seus estupradores.
Em segundo lugar, essa ditadura da percepção nos impossibilita de enxergar o problema e resolvê-lo de fato. É como se o país fosse uma casa, em que uma esposa quer decorar no estilo moderno, enquanto o marido insiste no estilo clássico. Quando um sai, o outro troca a decoração, para vê-la trocada de novo quando sair. Enquanto isso, ambos não percebem que a casa está construída sobre uma enorme fossa séptica, que ambos insistem em aumentar a cada dia que passa, destruindo aos poucos os minguados alicerces que ainda impedem a casa de afundar de vez. Enquanto brincamos de opor o liberal contra o social, insistimos em não enxergar que ambos os lados sofrem de uma corrupção endêmica, que ninguém quer enxergar em si mesmo. A fossa séptica embaixo da casa só aumentando.
Só insistimos em enxergar nossas flores pessoais, e o prurido que, invariavelmente, é dos outros. Assim é a nossa percepção.
Puxa, amigão! Como eu gosto da "pegada" que você tem quando fala de política!
Puxa, Carla, obrigado. Não é um assunto de que gosto, mas é um assunto importante. Dói, machuca, é desconfortável, é estridente. Mas não tem como a gente ficar sem pensar a respeito. Um beijo!
Interessante e clarividente ponto se vista amigo. Denso e incômodo também. E penso que pode se aplicar a muitas escolhas polêmicas de vida que temos que fazer. Excelente reflexão
"Denso" e "Incômodo" serão os nomes dos dois pugs que me servirão de companhia quando ninguém mais aguentar minha impertinência. Obrigado, Cida, de fato a substituição da razão pela percepção (e, acrescente-se aí a percepção guiada por nossos preconceitos) é fonte de problemas em muitas áreas da vida. O difícil é que percebamos, e o mais difícil ainda é que aceitemos este comportamento como erro. Ah, o mundo vai ser um lugar tão mais bacana quando nos livrarmos de (mais) esse orgulho...