Vamos fazer um pequeno experimento mental?
Imagine que você está ouvindo rádio e escuta a seguinte manchete de última hora: “Um homem armado invadiu um hospital em Feira de Santana, na Bahia, e abriu fogo contra médicos, enfermeiros e pacientes, matando 30 pessoas e depois se suicidando”. Antes que o narrador possa passar mais informações, a estação de rádio sai do ar por algum motivo, e a única coisa que você fica sabendo com certeza é essa breve chamada.
Como próximo passo do experimento, vamos fazer um exercício: coloque em ordem as informações que você gostaria de saber:
- Os nomes dos pacientes mortos;
- Os nomes dos médicos e enfermeiros mortos;
- Se há feridos e seus nomes;
- O nome do assassino;
- O que levou o assassino a cometer essa barbaridade;
Caso você não tenha nenhum parente ou amigo internado ou trabalhando no hospital (no caso, a vasta maioria da população, quando algo assim acontece), as chances são grandes que você coloque o quarto e o quinto pontos como informações prioritárias para você, não é verdade?
Quem cometeu essa barbárie? Por que fez isso? É o que queremos saber, na maioria das vezes.
Pois é, se esse é o seu caso, isso é um problema. Enorme, aliás.
Nossa curiosidade em saber quem é o criminoso e o que levou essa pessoa a cometer um ato tão bárbaro é, infelizmente, o que impulsiona o próximo criminoso na mesma direção. Em algum lugar, uma pessoa desequilibrada vê toda a atenção, toda a fama que o maluco da vez recebe. E passa a ter ideias.
Veja, esse comportamento, essa avidez pelos detalhes mórbidos que a maioria de nós nutre, não é nova. Desde que o mundo é mundo, damos uma atenção danada a crimes bárbaros — e, especialmente aos criminosos que os comentem — em nossa constante busca por excitação e entretenimento. Por exemplo, data do século XIV o “L’Affaire de la Rue des Marmousets”, em Paris, no qual um barbeiro maluco matou vários jovens e com seus corpos fez tortas recheadas que eram vendidas e apreciadas pela região (o filme Sweeney Todd, de 2007, estrelando Johnny Depp é baseado nessa história). Os sangrentos crimes de Paris foram à época, discutidos por toda a cidade, e o local onde ocorreram é um ponto turístico bastante visitado no Bairro Latino de Paris até hoje.
Quando Jack, o Estripador atacou Londres entre agosto e novembro de 1888, os jornais detalharam com avidez os crimes, mas o que mantém a história viva até hoje é a curiosidade de se conhecer o criminoso, cuja identidade ainda é um mistério. As cinco vítimas, Mary Ann Nichols, Annie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes, e Mary Jane Kelly, brutalmente mutiladas e assassinadas, pouco são lembradas.
Qualquer um dos “grandes” nomes do rol dos assassinos em série entreteve em algum momento visões de grandeza para seu nome, depois dos atos cometidos. “Eles vão se lembrar de mim, ah vão!”, é o que pensam, sabendo que a avidez do público por celebridades — independente do que as torna “célebres” — vai manter seus nomes vivos por muito tempo.
A mídia não se faz de rogada, apresentando ao público tudo aquilo que sua sanha busca saciar: detalhes sobre a preparação para o ato criminoso, textos e declarações que tenham escrito, opiniões e histórias de conhecidos e parentes, hobbiese obsessões que tenham entretido, e por aí vai.
Nessa veia, a Netflix recentemente disponibilizou o documentário Conversations with a killer: the Ted Bundy Tapes, em que traça um perfil de um dos mais notórios assassinos em série da História. Após ser preso, Ted Bundy confessou 30 assassinatos, mas as autoridades desconfiam que o número real seja maior, pelas insinuações que o próprio assassino não se cansava de fazer. As palavras iniciais do documentário, feitas pelo jornalista Stephen Michaud, dão a tônica para o documentário, ao mesmo tempo que reforçam o relacionamento que temos para com esse tipo de monstro:
Eu não tinha ideia do que estava fazendo. Eu não tinha ideia de com quem estava lidando. Mas eu sabia que era uma história e tanto. Então fui à prisão com meu gravador. E perguntei: “Que tipo de pessoa poderia fazer essas coisas?”
A confissão de que o jornalista não tinha ideia de onde estava pisando, mas tinha certeza de que seria “uma história e tanto” é o ponto chave da questão. Até porque o documentário não se cansa de reforçar a imagem de glamourque se construiu em volta de Ted Bundy: bonito, inteligente, simpático, uma personalidade magnética, um homem que inspirava confiança. O perfil traçado é o de alguém com que gostaríamos de conversar e ter um relacionamento de amizade.
Em outras palavras: o documentário realça o lado “bacana” de Ted Bundy. Os espectadores não se fizeram de rogados, e Conversations with a killerfoi sucesso imediato entre os assinantes da Netflix no mundo todo.
“Tá, mas e daí?”, perguntará você. Por que isso é um problema?
A resposta é simples: porque há, nesse momento, vários candidatos no mundo todo ao papel de Ted Bundy. Pessoas que se sentem deslocadas em sua condição, e que olham para as “celebridades” em que instantaneamente se transformam os perpetradores de barbáries em escolas, igrejas, mesquitas e que tais. Pessoas que veem o frenesi com que imprensa e público tratam os assassinos e pensam: “Por que não eu?”
Na década de 1980, Ted Kaczynski, o notório terrorista conhecido como “Unabomber” afirmou que deixaria a vida de terrorista caso seu manifesto — um documento em que denuncia o governo, a mídia, as empresas e quase todo mundo como causadores dos males do planeta — fosse publicado em um jornal de grande circulação. A revista masculina Penthousese apresentou para a publicação, mas Kaczynski recusou, e o manifesto acabou sendo publicado pelo prestigioso Washington Post. Desde então, todo candidato a terrorista sonha com ver suas ideias nas páginas de um jornal, por menos que venham a contribuir para a solução dos problemas da sociedade, e por menos que façam sentido filosófico ou sequer gramatical.
Em resumo: nós todos, cidadãos que jamais pensaríamos em cometer um ato bárbaro contra nossos semelhantes, ainda assim somos corresponsáveis — ainda que de maneira menor, mais humilde — pelos atos que viermos a ver nos noticiários. Isso porque alimentamos, com nossa avidez pelo sensacional no massacre de hoje, a barbárie de amanhã. Alimentamos o nascimento do próximo assassino de escola da mesma forma que alimentamos o ego de qualquer celebridade: dando-lhe a certeza da fama por meio de nossa atenção desmedida.
Quer contribuir para a redução de tiroteios em locais públicos? Caso você não tenha propensão a cometer um despautério desses, é até bem simples: quando acontecer, não se prenda às minúcias do fato. Claro que estarmos bem informados tem sua utilidade, mas basta saber que um doido atirou e matou várias pessoas nesse ou naquele local. Quer saber nomes? Procure os nomes das vítimas. Mais do que isso, é fetiche.
O nome do maluco? Para quê? Não vai servir de nada. Conhecer seus motivos? Para quê? Ele até pode declarar essa ou aquela razão, mas o fato é que nenhuma delas justifica a estupidez de vários assassinatos, e procurar informações a respeito beira a tara sem contribuir em absolutamente nada para com seu conhecimento ou sua formação. No fundo, não há “razão” para que se cometa um ato bárbaro desses, e nenhum motivo apresentado para tal serve para absolutamente nada.
Fazendo assim, deixando para lá esse tipo de informação absolutamente inútil, tiramos o oxigênio da fama do sujeito, deixando que essa fama morra à míngua. É o único jeito de matarmos a celebridade: esquecendo que ela existe, dando de ombros para suas macaquices.
Aposto que se tomarmos essa atitude coletiva — de largarmos a mão de endeusar os covardes que atiram em crianças como forma de imortalizarem seus nomes — em pouco tempo esse tipo de estupidez começa a diminuir.
Mas quem estou querendo enganar? É claro que a massa que baba ovo para big-brothers, como se tivessem algo a contribuir; que bate palmas na primeira fila para seus políticos de estimação por mais que eles roubem igualzinho aos seus oponentes; que consome fofocas dos famosos, como se assim vivessem um pedacinho de suas vidas, jamais vão mudar suas atitudes vazias e nocivas.
Os próximos atiradores de escola agradecem e contam com isso.
"Aposto que se tomarmos essa atitude coletiva." Parei nessa frase, pois é num mundo individualista que vivemos. Sim, nem sempre, mas nas grandes cidades, no geral? Com essa sanha de "inovar", "empreender" só para competir, ter sucesso, mais dinheiro. E não é só escolha (ainda que seja), pois o que chega, e aos montes, é isso: crime, corrupção, morte, fama, sucesso, fofoca. Afinal, é o que vende, não? O mundo parece menor, pior e o que resta? Aparecer de alguma forma, nem que seja matando pessoas. Abs!
Parou nessa frase, jaylei? Puxa, se tivesse continuado, veria que até eu caio na risada com essa possibilidade de "tomarmos essa atitude coletiva". E justamente pelos motivos que você levantou. Infelizmente não vamos mudar. E mais gente vai continuar morrendo à toa para que outros pulhas fiquem "famosos".
Caro Ruy, parei na frase porque me fez refletir. Achou que eu viria até aqui e não leria o seu texto inteiro? kkkkkkkk
Ah, OK. Bobeira minha. Desculpa...
Fala, Ruy! Vou deixar a frase abaixo e o link para a matéria sobre a Lola, se vc ainda leu. "Claro que tudo isso traz o risco de trazer mais pessoas perturbadas aos chans, mas não podemos fingir que não existem. Eles não vão desaparecer sozinhos." Como dizem, é sinistro. https://tecnologia.uol.com.br/reportagens-especiais/lola-aronovich-dez-anos-sendo-alvo-de-grupos-de-odio-que-agem-no-submundo-da-web/index.htm#tematico-10
Muito obrigado pela matéria, Jaylei, não tinha visto. Muito obrigado! Assustador, mesmo. Olha, enquanto não aconteceu uma tragédia, sou totalmente favorável à denúncia desse tipo de "organização", mesmo que leve mais gente (desequilibrada) até eles. O fato é que só denunciando alertamos as pessoas para o perigo. Só que se um deles resolve fazer uma estupidez, aí acho que tem que desfocar do indivíduo. É tudo o que ele quer: ser lembrado. Dar a notícia, tudo bem, vincular o canalha a um grupo espúrio, tudo bem. Mas que isso seja 5% do volume de dados da notícia. Que foquemos nas vítimas, e não nos imbecis que cometem atos estúpidos.