O ritual de aniversário é sempre o mesmo. Começa um ou dois dias antes da data com a esposa perguntando algo na linha de “onde é que a gente vai jantar esse ano?”, ao que um dos filhos (e nunca eu) invariavelmente responde: “Ah, pode ser no Matsu, mesmo”. O Matsu era um restaurante japonês que até há pouco funcionava aqui próximo de casa. Detalhe: este é o ritual do MEU aniversário. Sempre sorrio quando presencio este diálogo, pois uma parte de mim fica impressionada com a desenvoltura com que decisões são tomadas para um evento que deveria ter a mim como centro. Fazer o quê? É o que dá ser pai de coração mole. O fato é: o que me interessa no evento — muito mais do que a escolha do restaurante — é a presença do André, do Daniel e da Léa, todo mundo junto à mesa, conversando e convivendo. Já é um presente muito acima de meu merecimento, estou certo.
Ainda assim, outro pedaço de mim fica pensando: puxa, tantos restaurantes bons aqui na região, tantas possibilidades, tantos sabores… A gente bem que podia ir a algum deles. Mas sei que a “tradição” está instaurada, e pouco há o que ser feito. Mesmo o Matsu tendo fechado, os meninos e a esposa já ungiram o restaurante japonês da vez. Sancionado, nada resta a fazer.
Eu já até brinquei com a situação — várias vezes, aliás —, mencionando a idiossincrasia de não ter voz na escolha do restaurante na comemoração do meu aniversário, ao que sempre ouvi: “É isso mesmo, papai”. Simples assim.
Uma insistência de minha parte, por mais que eu tivesse certeza de que todos gostariam de minha escolha seria recebida com fúria geral, e o momento de harmonia seria manchado. Para não correr esse risco, conto meus ganhos e aproveito o dia. De novo: o que mais importa é a presença de todos, e o local é secundário.
Será que poderia ser diferente?
Corta para o dia 07 de setembro, quando em meio às nossas comemorações nacionais, a Apple lançou a nova versão do iPhone. Mesmo com todas as “surpresas” tendo sido de alguma forma reveladas com antecedência por funcionários de empresas fornecedoras, houve um momento de prender o fôlego no evento: Phil Schiller, o VP de Marketing da empresa foi tácito ao anunciar a remoção do conector universal de fone de ouvido, que não mais estará presente nos aparelhos da Apple. O interessante foi a justificativa de Schiller para este ato: coragem. A empresa, segundo ele, teve a coragem necessária para abandonar uma tecnologia supostamente obsoleta em função dos também supostos ganhos que teremos com as tecnologias sem fio. Logo em seguida o executivo anunciou os AirPods. Fones sem fio que se conectam automaticamente aos iPhones.
No mesmo dia já começou a chiadeira que, aliás, se estende até agora: “coragem uma pinoia! Absurdo, isso sim! Ganância, isso sim! Falta de consideração, isso sim!”, e por aí vai.
“E aí”, pensei eu com meus botões, “foi coragem ou ganância?”
Há um argumento forte para o lado da ganância: os AirPods custam US$160,00 nos EUA, contra US$30,00 que é o preço dos EarPods, os fones com fio que a empresa comercializa. A alternativa é usar um adaptador que a empresa manda junto com o iPhone, e que custa US$9,90 se comprado separado. Especula-se que a empresa vá vender milhões de adaptadores, e mais ainda AirPods. O argumento é simples: se meu fone com fio cai de meu ouvido, ele fica pendurado. Se um AirPod cai de meu ouvido, há uma possibilidade distinta de “babau”. Que coragem, que nada, não é verdade?
Não. Vou contra a maré nesta, e penso que não. Acho que a empresa teve, sim, muita, mas muita coragem. Uma coragem que no ramo de tecnologia pouquíssimas empresas têm condições de ter.
Por quê? Simples: a decisão da Apple deixou enfurecidos mais ou menos 7/8 dos potenciais consumidores de smartphones, e o 1/8 restante está indeciso sobre como se sente e se é de fato uma boa ideia.
Que outra empresa tomaria uma decisão de mercado que certamente iria enfurecer a maioria de seus potenciais clientes? O risco é simples: se estes potenciais consumidores batem o pé e resolvem não aderir à mudança imposta, o dano às vendas é enorme. O dano à marca é maior ainda.
É ou não é necessário ter muita coragem para tomar uma decisão dessas. “Não é a coragem de entrar em um edifício em chamas para salvar uma vida, mas é coragem mesmo assim”, disse John Gruber, especialista nos assuntos da Apple.
“Não é a coragem de entrar em um edifício em chamas para salvar uma vida, mas é coragem mesmo assim”
Não é a primeira vez (nem a segunda, nem a terceira) que a Apple toma uma decisão assim. Para ficar só em alguns exemplos contundentes, a empresa foi a primeira, no auge das vendas de disquetes, a remover os leitores desse tipo de mídia de seus computadores, em 1998. Chiadeira geral, gritos de raiva, juras de abandono da plataforma. No ano seguinte, os demais fabricantes de computadores começaram a tomar a mesma decisão, e em pouco tempo o disquete era parte do passado.
Dez anos mais tarde, em 2008, quando quase todo o software que se comprava era vendido em CDs e DVDs (sem falar em músicas e filmes, que só circulavam nestes formatos), e a Apple começou a arrancar os leitores dessas mídias de seus computadores, terminando o processo em 2012. Música? Os iPods eram apontados como a única solução que fazia sentido para isso (pela própria empresa, claro). Choro e ranger de dentes, ameaças de class action suits, os processos coletivos a que os americanos são tão afeitos, e novas ameaças de abandono. Que nada. Em pouco tempo a indústria seguia os passos da Apple e os CDs/DVDs já nos parecem mais do que anacrônicos. Quem ouve música pelo Spotify e vê filmes pelo Netflix não sente falta das rodelinhas plásticas.
Há outros exemplos, sempre com o mesmo resultado.
O fato é que quando uma empresa com o poder da Apple toma uma decisão dessas, muita gente pode até reclamar, mas no fim se entrega. A Apple pensou muito antes de tomar a decisão (vale para qualquer uma das citadas). Teve a visão de que o futuro iria em outra direção, com vantagens para o consumidor, para o desenvolvimento da tecnologia e — obviamente — para si mesma e para a indústria, que faturaria mais. É uma situação em que, por um inconveniente ao consumidor e sob um enorme risco para quem encabeça a decisão, todos ganham no fim.
No caso da remoção do plug de fone de ouvido, a situação é a mesma na chiadeira, e tende a ser a mesma nos resultados. Esta tecnologia é centenária, tendo sido desenvolvida para atender as primeiras centrais de conexão telefônica manuais (que exigiam uma telefonista fazendo manualmente as conexões). São universais, são simples e funcionam perfeitamente bem. No então, são um empecilho para que tecnologias mais modernas e vantajosas se desenvolvam. Os fones sem fio certamente são uma vantagem sobre os fones com fio (quem embaraça fios de fone de ouvido três ou quatro vezes ao dia, sabe bem disso, e quem já teve um fone destruído por estar passando com pressa em um lugar e ver o fio ficar preso em uma maçaneta ou coisa parecida também sabe). Contudo, os fones sem fio hoje têm qualidade que deixa a desejar (em muitos casos) e são caros. Que maior incentivo para remover estes dois defeitos do que remover a alternativa mais cômoda e segura?
Bem, mas tem o risco de ninguém comprar o novo iPhone sem plug analógico e o risco de a indústria se recusar a seguir a direção “ditada” pela Apple, não é verdade? Bem, até seria, não fosse por dois fatos bem recentes.
O primeiro deles diz respeito às vendas dos novos iPhones: antes mesmo da abertura das vendas dos aparelhos nas lojas, um dos dois modelos já havia sido esgotado com vendas pela Internet, e o outro modelo já não estava mais disponível em todas as cores e configurações. A possibilidade de o público não comprar? Pode esquecer.
O segundo é ainda mais significativo: poucos dias depois do lançamento dos novos iPhones, a Samsung — principal concorrente da Apple no mercado de smartphones e dona da maior fatia de mercado destes aparelhos — anunciou que também está desenvolvendo seu conector proprietário para fones de ouvido, e que deverá remover os plugs analógicos em suas próximas gerações de smartphones. Ou seja: o caminho iniciado pela Apple já está sendo trilhado por outros.
Em suma, a receita segue intacta: (1) Apple enxerga um caminho diferente para o futuro; (2) Apple implementa esse caminho, arriscando a fúria e o abandono de consumidores e da indústria; (3) chiadeira geral por parte dos consumidores e da indústria; (4) sucesso nas vendas mostra que a mudança faz sentido para o consumidor; (5) a indústria, finalmente enxergando que a mudança tem o potencial de trazer ganhos, adota o caminho “empurrado goela abaixo” pela Apple; (6) o tempo passa, a tecnologia melhora, os preços caem, o faturamento aumenta, todos ganham.
Bom, esse cenário todo, por mais díspar que seja de minha situação pessoal, será que me empurra a sugerir um restaurante diferente, agora que meu aniversário se aproxima?
Não, acho que não. Por um lado, os meninos já estão lambendo os beiços, antecipando o rodízio no restaurante japonês. Por outro, convenhamos: eu não tenho — nem de longe — o cacife da Apple.
muito bom
Obrigado, Paulo!