O Oscar desse ano foi um evento inusitado: o mais caro espetáculo da TV mundial, assistido por mais de 2 bilhões de pessoas em todo o planeta, com dois momentos, no mínimo, constrangedores. O primeiro: a exibição de um grupo de turistas que, sem saber para onde iam, foram levados até o auditório, onde deram de frente com a nata do cinema americano. Difícil foi definir quem era o “público” e quem eram os “animais de zoológico” naquela cena, com os turistas e os atores em seus trajes de gala se alternando naquele espetáculo constrangedor. O segundo, a “gafe do século”: uma confusão nos envelopes, resultando no anúncio do filme errado como vencedor do Oscar.
Ocorre que o Oscar é um reflexo do cinema americano, e essa é uma indústria que põe na estética uma quantidade desproporcional de fichas em suas apostas, deixando outros setores importantes descobertos. Os próprios entregadores do prêmio de melhor filme são prova disso: Warren Beatty e Faye Dunaway foram os atores principais em Bonnie e Clyde, que completa 50 anos em 2017. Um filme icônico, dois ícones do cinema, e ainda por cima dois atores que “envelheceram bem” (continuam “apresentáveis”, não se envolveram em escândalos, não tomaram posições radicais por essa ou aquela causa banida, e por aí vai). Só não contavam com receberem o envelope errado na hora do anúncio de melhor filme.
Esse erro brutal na hora do anúncio, aliás, é uma metáfora excelente para o cinema americano e, em especial, para uma categoria que me é muito cara, pois, como professor de computação gráfica, não poderia ser diferente: as animações.
Nesse ano, a linha de indicados para o Oscar de melhor animação contava com duas animações em 3D dos estúdios Disney (Moana e Zootopia), dois filmes de stop-motion (Kubo e Minha Vida de Beringela) e uma animação clássica (A Tartaruga Vermelha). Desnecessário dizer que a ditadura da estética de Hollywood colocava Moana e Zootopia como favoritos, e nada surpreendente que Zootopia tenha levado a estatueta. Sim, é um bom filme, e sim, até que o enredo é interessante. Não é genial (como Kubo e A Tartaruga Vermelha), mas tem aquilo que uma animação da Disney tem de ter, obrigatoriamente: uma mensagem edificante, uma moral, uma lição.
É parte da estética hollywoodiana, que se encaixa perfeitamente à estética visual e de ação do filme.
Longe se vai o ano de 2005, quando a animação stop-motion inglesa Wallace & Gromit venceu nessa categoria, e mais longe ainda vai o ano de 2002, quando a animação clássica japonesa A Viagem de Chihiro levou a estatueta. De 1995 — o ano de estreia da Pixar, em que tivemos o lançamento e a premiação especial de Toy Story — para cá, apenas essas duas exceções existem no cenário de animações. Todos os demais premiados são animações feitas em computador, com técnica 3D.
Tive alguma esperança de que, dessa vez, fosse diferente. Não para a melhor das animações, A Tartaruga Vermelha, mas pela segunda melhor, Kubo.
Kubo une uma história tipicamente oriental, com dramas de uma criança em situação de insegurança como não vemos em desenhos da Disney desde Bernardo e Bianca. Hoje em dia, os estúdios de animação da empresa de Burbank não são nada senão politicamente coretos. Famílias perfeitas, crianças audazes — se um pouco ousadas demais — problemas bem definidos, preto-e-branco que dá para distinguir até pelo tato.
Já Kubo começa com uma mãe em fuga, tornando-se nos primeiros momentos do filme completamente dependente do filho. O menino usa seu instrumento de cordas para conjurar mágicos origamis, que o divertem e são seu ganha-pão. O inimigo é mortal, os perigos são reais, e o suspense não é o que as típicas famílias americanas gostam para seus filhos pequenos. A propósito: em suas andanças, o garoto é adotado por uma macaca e por um besouro. Não só o enredo e os conflitos são belos, trágicos e atrativos, mas também o design visual encanta e é criativo a não poder mais. Em stop-motion, cada quadro é fotografado individualmente, o que torna o processo bastante trabalhoso. Imagine: na melhor das hipóteses, precisamos de 24 fotografias sendo exibidas em sucessão em apenas 1 segundo para que nossos olhos e nosso cérebro tenham a percepção de um movimento contínuo. Em um minuto, há 60 segundos. Em uma hora, há 3600 segundos. Em um filme de uma hora e meia, há, na melhor das hipóteses, 86.400 quadros. Ou seja, são 86.400 fotografias tiradas uma a uma. Mas o processo também oferece um amplo leque de possibilidades, pois qualquer ação passa a ser quebrada em uma sucessão de fotos. Um salto triplo mortal carpado executado em sincronia com sete tubarões saltando em sincronia da água? Nada difícil, uma vez que o cineasta controla todos os bonecos, e os move milimetricamente no tempo e nas posições exatas. Kubo é um filme lindo, que usa os recursos da stop-motion com maestria, mostrando-nos o poder mágico das cordas de Kubo, que constrói origamis e histórias com seus acordes, que luta contra monstros míticos, que encara seus próprios defeitos e nem sempre vence. Se você não viu, veja.
A Tartaruga Vermelha, por sua vez, é uma produção conjunta da França com o Japão, representado pelo fabuloso Estúdio Ghibli, de Hayao Miyazaki, o diretor de A Viagem de Chihiro e de tantas outras obras primas. Trata-se de um desenho animado para adultos, não por conta de cenas sensuais ou qualquer coisa que o valha. O filme começa com um jovem sendo jogado pelas ondas, náufrago, finalmente chegando a uma pequena ilha deserta. Só, na ilha, ele não tem com quem conversar, e o filme não tem diálogo falado em momento algum. Nesse lugar, acompanharemos o náufrago em suas tentativas de sobreviver, de ir embora, de ser resgatado, de conviver com o ambiente em que se encontra. O filme versa sobre as frustrações que temos, náufragos nos ambientes que nos cercam, e da vida que construímos em nossas ilhas pessoais. É uma animação 2D, simples, tradicional. As cores não são vivas, não há grandes imitações de perspectiva, e o visual é humilde, como as coisas de um náufrago em uma ilha deserta. O poder da produção está nas interações dele com seus arredores, com suas dificuldades, com as soluções que dá aos seus problemas, e com a motivação que encontra para seguir vivendo. É um filme delicado e surpreendente, triste e significativo. Se você não viu, veja.
Kubo e A Tartaruga Vermelha são, enfim, dois filmes mais tridimensionais (muito mais tridimensionais, diga-se de passagem) que o ganhador do Oscar.
Comments: no replies