Foi com muita surpresa que recebi a informação de que ambos os candidatos mais bem-posicionados à presidência da república no atual ciclo eleitoral prometem algo de claramente perigoso para nossa frágil democracia: a revogação da Constituição, substituindo-a por novas Cartas.
De um lado. Bolsonaro, que não desmentiu nem desautorizou Mourão, seu candidato a vice, quando o general da reserva cogitou uma tal “constituição de notáveis, isto é, uma Carta feita sem a participação do povo. Do outro lado, no programa de governo de Haddad, temos no item 17 a menção à “necessidade” de um “novo processo constituinte”.
Ambas as movimentações tendem a afastar o país de seu caminho — tortuoso, lento, cheio de tentativas de emperramento e de desvio — rumo à consolidação democrática. No caso de Bolsonaro, o que fica claro é que, para ele e seu séquito, esse caminho não funciona, e precisamos de um tal “choque de ordem”. Já no caso de Haddad, o que se percebe com clareza por trás do discurso de “devolver o poder ao povo” está o direcionamento para reduzir e controlar os mecanismos de fiscalização do governo.
Dois péssimos direcionamentos, duas ideias perigosas para o país.
Por quê? Para entendermos o problema, temos que dar uma olhada na História das Constituições Brasileiras.
Em 1824, depois de 2 anos de “independência”, D. Pedro I outorgou a primeira constituição nacional. Foi outorgada (imposta), ao invés de promulgada (adotada democraticamente) porque ele próprio, o imperador, determinou o que estaria e o que não estaria escrito na Carta. Constituiu-se como quarto poder, o tal “poder moderador”, a se interpor entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário e qualquer decisão que desagradasse a ele próprio, o imperador. Não há a menor dúvida de que esta tenha sido uma Constituição não-democrática.
Em 1890, depois da proclamação da República, convocou-se uma constituinte, que promulgou a Constituição de 1891. Essa foi nossa primeira carta democrática, e apesar disso, calcificou em lei várias estruturas velhas e espúrias, como no caso do voto de cabresto. Foi um passo em direção à democracia, talvez o passo possível a Deodoro da Fonseca e seu gabinete naquele momento.
Em 1932, depois de muitas exigências a Getúlio Vargas feitas por São Paulo por uma nova (e mais justa) Constituição, partimos para a Revolução Constitucionalista. Debelada a revolução, Vargas esperou a poeira baixar e convocou nova constituinte, pois a Constituição de 1891 era insustentável em um mundo em transformação. Surgiu, então a Constituição de 1935, promulgada pelo Congresso e também democrática, um avanço à Constituição da República.
Infelizmente, durou pouco, pois Vargas deu um golpe de estado e se instaurou como ditador. Vargas outorgou, então, a Constituição de 1937, com base em seus desígnios de poder. A Constituição de 1937 revogou os avanços democráticos conquistados até ali, e é uma Carta patentemente não-democrática.
Essa constituição durou até o fim da Era Vargas, em 1945, e quando Dutra assumiu a presidência, convocou nova Constituinte para substituir a Carta de 1937, autoritária. Foi promulgada, então, a Carta de 1946, também democrática, revogando a ordem ditatorial anterior, e recolocando o país no caminho da democracia.
Depois do golpe militar de 1964, a carta de 46 durou pouco, sendo substituída pela Constituição de 1967, dita “promulgada”, mas feita sob o guante dos militares e aprovada por um Congresso totalmente limitado aos parlamentares não-cassados, o que a coloca no campo das constituições não-democráticas de nosso país. Revogou direitos, “legitimou” o golpe e os ditadores militares, concentrou o poder nas mãos das forças armadas e abriu o caminho para os nefandos “atos institucionais”.
A Carta de 1967 durou até o fim da ditadura, em 1984, e a constituinte de 1988 promulgou nossa Carta atual no mesmo ano de 1988. A Constituição de 1988, mais uma vez, revogou os preceitos ditatoriais do período que se findava e adotou novamente princípios democráticos,
O que têm as constituições não-democráticas em comum? Concentram poder no executivo federal, criam mecanismos não-democráticos de governo (como no caso dos Atos Institucionais da ditadura, que reduziam o povo a gado, com basicamente um único direito, o direito de permanecer em silêncio quando a ditadura assim determinasse) e tiram do povo o poder de se manifestar contrariamente à ordem imposta. Essas Cartas também geram privilégios para os “amigos do rei”, o que invariavelmente legitima distorções insustentáveis em nossa economia. A corrupção também invariavelmente come solta entre os “amigos do rei”, o que torna vazia a promessa de “ordem” que o ditador enverga como parte de sua imagem.
Hoje temos uma Constituição democrática em vigor, e, independente de quem venha a vencer o pleito — se for um dos dois mencionados, claro —, caminhamos para uma Constituição outorgada, como no caso de 1824 e 1937 ou de cabresto, como no caso de 1967. Quando isso acontecer, salve-se quem puder, pois a concentração de poder tende a criar problemas sérios e aprofundar a crise, como a História nos ensina.
Agora observe: as Cartas democráticas surgem como necessidade de a nação restabelecer o povo como centro dos interesses da nação; as Cartas anti-democráticas revogam direitos e instituições, estabelecendo o governo e o governante como centro dos interesses da nação. É para esse segundo caso que caminhamos a passos rápidos.
A Carta de 1988 é perfeita? Não, não é. Mas é fundamental observar que é uma Constituição Democrática. Cria todos os mecanismos e estabelece todas as instituições que garantem os direitos do povo. Se está sendo cumprida ou não, é outra história. Se está sendo distorcida ou não, é outra história ainda. Mas revogá-la é remover as garantias que hoje temos a nosso favor.
“Ah, mas a situação é insustentável, e a única maneira de mudar a Constituição é por meio de outra Constituinte!”, afirmam incautos dos dois lados da corrida presidencial.
Porém, ao contrário do que se afirma, as mudanças constitucionais não se dão apenas pela convocação de uma nova Assembleia Constituinte ou de uma “constituição de notáveis”. As emendas constitucionais permitem que modifiquemos a Constituição, melhorando-a e garantindo que nossos direitos e a estrutura do estado se mantenham (república democrática, os 3 poderes e suas responsabilidades, os direitos individuais dos cidadãos, etc.). Essa garantia se dá porque os artigos que versam sobre esses assuntos são considerados “Cláusulas Pétreas”, isto é, artigos que não são passíveis de emendas. Revogar a Constituição é revogar esses artigos (a única maneira de revogar esses artigos, aliás), e sabe-se lá o que vem no lugar.
Uma coisa é certa: Bolsonaro tende a enfraquecer o Congresso e concentrar mais poder em si mesmo e nas forças armadas, que tendem a extrapolar sua função de defesa da nação e passarem a defender os interesses do governo.
Outra coisa também é certa: Haddad tende a enfraquecer as instituições de fiscalização e concentrar mais poder em si mesmo e nos órgãos sob seu domínio, que tendem a extrapolar suas funções para com a nação e passarem a defender os interesses do governo.
Em ambos os casos, o risco é gigantesco de tentativa de perpetuação no poder, revogando o limite de dois mandatos, ou mesmo cancelando eleições.
E tudo isso sem que haja necessidade de democratização do país, o que justificou as constituições democráticas de nossa história (1891, 1935 e 1988). Não, o que justifica essa nova constituição não-democrática, aos olhos de ambos os postulantes, é a necessidade de maior controle do executivo sobre o estado, cada um a seu modo, e cada um com objetivos próprios, não declarados. Ocorre que o estado não serve ao executivo, e sim o contrário. Uma nova constituição vai nos afastar de nosso já frágil processo democrático.
De maneira mais direta, o que temos à frente é difícil de engolir: os bolsonaristas parecem estar com saudade dos tempos de AI-5, enquanto o haddadistas parecem estar curiosos sobre como o modelito da Venezuela ficaria no corpitcho do Brasil.
Ambos os casos justificam repensar o voto no primeiro turno: nenhum dos demais candidatos cogita revogar a Constituição.
Bela observação, como diria um jargão: só comete erros aquele que não conhece o passado.
Verdade, Julino. O passado é um professor e tanto. mas fala baixinho e não liga quando a turma toda gazeteia aula...