Hoje andei lembrando de um texto antigo do Gilles Lapouge, quando ainda estava em sala de aula, sobre a necessidade da democracia, em tempos prosaicos e sombrios.
O texto falava da cobertura morna das eleições na França pelos jornais à época, Ruanda estava logo ali, duas páginas depois, na seção internacional. Lapouge ressaltava o quão a democracia poderia ser chata, sem sobressaltos, quando estável.
No entanto, sem acompanhamento, sem participação nossa, ele defendia que a estabilidade das instituições poderia ruir a qualquer momento, em qualquer lugar. A barbárie está sempre à espreita.
Na novela Coração das Trevas (1902), o escritor polonês radicado na Inglaterra Joseph Conrad já afirmava isso. Marlow, o narrador da história, inicia seu relato imaginando o que os legionários romanos sentiram enquanto subiam pela primeira vez o Rio Tâmisa no que era a Britania antes de Cristo. A maior nação do mundo à época também já tinha sido uma terra inóspita. Essa imagem também insinuava que a civilização poderia regredir, como ocorria com os europeus que subiam o Rio Congo na aventura trágica da colonização belga.
Curioso. Passávamos a limpo esse texto para alunos de vários cursos de uma certa faculdade privada. As cotas ainda não tinham sido plenamente implantadas. Os alunos (e nós, professores, arrisco a dizer) vivíamos na bolha universitária.
Ainda assim, era o esforço de um conjunto de professores de língua portuguesa, uma camaradagem nem sempre coesa, que tentava romper um pouco essa distância entre a realidade dos alunos e a vida cotidiana brasileira. Era difícil, pois estereótipos sempre rondavam a aula.
Esse isolamento e estreiteza de pensamento sempre esteve presente. E ríamos, achando o extremismo de colegas professores de outras áreas e de alunos uma piada sem graça. A vida sempre vista de modo literal, dizíamos. De modo geral, a conta disso veio agora, bem salgada.
Esse riso amarelo, constrangido, era um reconhecimento de nossa condição. Como sociedade, como indivíduos. O retrato era triste. Continua sendo. E havia, como há agora, um esforço coletivo para não se olhar no espelho, o que existe em todos os lados de que olhemos o momento atual.
Há um grande ressentimento em torno disso. Criou-se a imagem de que, como em qualquer Fla-Flu que tomou a nação nos últimos tempos, seríamos divididos entre os “esclarecidos” e os “burros e idiotas”, uma classificação bem reducionista que se move constantemente, conforme o ponto de vista que se assume. Fico muito triste por alguns amigos, colegas, alunos, ex-alunos, afirmarem que os acham burros, incompetentes, mal informados, mal formados. Para reafirmar 0 óbvio, estamos todos nós circunstanciados à mesma condição: nossos valores, conhecimento e identidade estão sempre em construção.
Esse mesmo riso amarelo dos ditos esclarecidos revela uma certa arrogância, seja qual for a perspectiva, daquele que ri. Nisso também há medo: o medo de, ao olhar por trás dos ombros, notar um outro alguém a observar, rindo também. Isso se aplica à política, à economia, à religião, à sexualidade.
Nesse momento, precisamos combater esse medo. Não podemos tolerar uma vida regulada pelo ódio mobilizado pelo pavor. A ameaça se tornou real, porque está sendo lida há muito tempo em sua literalidade por um número cada vez maior de pessoas.
A responsabilidade dos professores nesse sentido aumenta também. Se chegamos a essa conjuntura, devemos admitir que falhamos conjunturalmente como educadores. Todos nós.
Em meados dos anos 2000, os alunos liam o texto de Lapouge, entreolhavam-se e perguntavam: “Mas por que estou lendo esse texto? O Brasil nem é mencionado. Somos um país pacífico.” Precisávamos lembrar dos massacres, chacinas, eleições nada tranquilas, mesmo em tempos de democracia no Brasil.
Minhas inconsistências, dúvidas, vacilo, orgulho, preconceitos e ações pregressas não me permitem ser um bom exemplo para defender posições. Tenho sido inclusive a materialização, para uns e para outros, do que se quer excluir, de alguma forma.
Para uma melhora efetiva, é preciso autocrítica. O poeta francês Francis Ponge afirma em um de seus versos do livro O Partido das Coisas: “Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal qual és. Em consonância com teus vícios. Em proporção com a tua medida”.
O escritor brasileiro Bernardo Carvalho, em sua resenha deste livro, realiza a seguinte leitura sobre esse trecho: “Em outras palavras, adaptadas às circunstâncias atuais, seria possível dizer: não adianta querer ser outro para melhor se adequar ao seu tempo, um tempo em que tudo lhe é contrário. Sua arte, então, a mais natural de todas, é resistir.”
Se puder dizer algo ainda sobre nossa decisão sobre o pleito de amanhã, seria o seguinte: não vote mobilizado pelo medo, não se permita ter medo, não permita que suas aspirações sejam sufocadas por bravatas.
Votar e respeitar o pleito e o jogo democrático é demonstrar a maturidade que tanto almejamos como sociedade, mesmo que discordemos você e eu dos caminhos futuros. A democracia é chata, mas necessária. Era o que dizia o texto do Lapouge. Era o que dizíamos aos alunos. Era o que queria dizer nesse texto.
Até amanhã. Durma bem, pois o Brasil será bem diferente no fim deste domingo.
Bom dia. Como acabei de escrever, após ler o texto da Carla, temos escolhas e essas dependem muito do ambiente, do que ouvimos, lemos, da forma que sentimos, mas, dependem muito, na minha opinião, do quanto nos conhecemos. Sim, essa frase é ótima. “Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal qual és." Acho curiosa essa questão da barbárie estar sempre à espreita ou da 'cadela do fascismo estar sempre no cio", pois qual o motivo disto acontecer? Somos nós que falhamos com nós mesmos e assim permitimos essa sempre latente possibilidade de revisitar o que gera medo, controle, agressão? Quem de fato pode pacificar nossa sociedade e nos livrar de destinos que poderiam ser melhores? "Se chegamos a essa conjuntura, devemos admitir que falhamos conjunturalmente como educadores. Todos nós." Cientes disso, não é só resistir, mas dar um passo além, novas perguntas e novas respostas. Abraço.