“Nossa, essa doeu no meu ouvido”!! “Estão assassinando o português”! “Essa pessoa nem parece brasileira, não sabe nem falar”!! Você, seguramente, já disse uma dessas frases ou já as ouviu de alguém.
Que tal “frecha”, “alevanta”, “frauta” e “enveja”? Doeram em seus ouvidos? Contravenções linguísticas graves, não? Pois quem “as cometeu” foi ninguém menos que nosso maior poeta lusitano, Luis Vaz de Camões, em sua célebre obra Os Lusíadas, que inaugurou o chamado período moderno da língua portuguesa.
É interessante, não, mais do que isso, é instigante, é curioso ver como a mídia – principalmente os jornalistas e comunicadores – e mesmo pessoas leigas, arbitram sobre o que é certo e errado na língua. Não se atrevem estes a opinarem sobre áreas como neurociência, células-tronco, usinas nucleares ou fusão do átomo, mas sobre o português nosso de cada dia, acham-se os especialistas.
Receosos de que a língua se corrompa ou sofra tantas mudanças que se transforme em outro idioma, creem ser guardiões do “bem falar”, buscando proteger a língua de marcas que a possam descaracterizar. Não, as coisas não funcionam dessa forma. Mudanças na língua acontecem o tempo todo, sem que ela “mude”. Mas isso parece um contrassenso, não é mesmo? Ela sofre mudanças sem mudar? Sim, existem mudanças permitidas dentro de um sistema linguístico, reguladas pelas características fonético-fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas desse mesmo sistema. As mudanças não são aleatórias, mas seguem a lógica de cada língua.
Com base na ciência linguística, e não na opinião do povo – que nem sempre é a voz de Deus – variações – e não erros – como julgam os pseudoespecialistas, são recorrentes em todas as línguas e não só na língua portuguesa. Por exemplo, as palavras mulher e velha, dependendo da região, podem ser pronunciadas como “mulé” ou “muié” e “véia”. Malvado pode virar “marvado” e olho, “zóio”. Você e eu somos capazes de reconhecer essas palavras como sendo da língua portuguesa e não de outra. Isso porque, na língua portuguesa, o som expresso pela letra “l”, pode traduzir-se, na fala, como a vogal u e como a consoante r, conhecida, nesse contexto, como “r caipira”. Na linguística, tecnicamente, r retroflexo. Seria de se estranhar se, em vez de “r”, aparecesse, na pronúncia, o som de p ou s, por exemplo. Desse fato, deriva-se uma regra fonética que, simplificadamente, pode ser assim expressa: em contextos de final de sílaba (ou palavra), o som expresso pela letra l pode realizar-se como a vogal u ou como o r retroflexo. Com “mulé” e “véia” ocorre algo semelhante. Em contextos intervocálicos, isto é, entre duas vogais, o som representado ortograficamente pelo lh (na linguística, chamado de lateral palatal), transforma-se, na fala, em ditongo.
Viu como nossa língua varia sem deixar de ser língua portuguesa “com certeza”?
Geralmente, ao ouvirmos registros como os citados acima – este é o nome “técnico” dado às expressões faladas de uma língua – logo os associamos à falta de instrução ou escolaridade, ou à classe social mais baixa. No entanto, esse mesmo julgamento não ocorre diante de falas como como “Sobrou 20 reais de troco” ou “Não tenho ideia de que bicho seria essas pegadas”, produzidas por pessoas de classe média ou alta. De acordo com “as leis” da gramática normativa, o correto seria “Sobraram 20 reais” e “Não tenho ideia de que bicho seriam essas pegadas”. Erros desse tipo são comuns na fala de ricos e pobres, instruídos e analfabetos. Então, o que faz um “erro” ser mais condenável que outro? Que critérios são utilizados para julgar um e outro registro? Já dizia Maurizio Gnerre (1991, p. 6-7): “uma variedade linguística vale o que valem na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”. Do ponto de vista da gramática normativa, tão valorizada pelos guardiões da língua, tais enunciados estariam tão errados quanto aquelas palavras sobre as quais acabamos de explicar. Trabalhadores rurais, garis, empregadas domésticas, pessoas analfabetas ou com baixa escolaridade não gozam de qualquer prestígio social ou econômico, e são discriminados por sua forma de expressão, enquanto advogados, políticos, engenheiros, médicos, jornalistas, empresários não são julgados como ignorantes ou “corruptores da língua” como aqueles, devido à posição que ocupam na sociedade. Não se pode julgar um fenômeno linguístico como certo ou errado com base em critérios que não sejam linguísticos, o que desautoriza as críticas de leigos e os já citados pseudoespecialistas.
Depois de toda essa discussão sobre erros, teste a si mesmo quanto ao modo de julgar os fenômenos da língua portuguesa, provando deste delicioso poema do grande poeta e cordelista paraibano Zé da Luz, intitulado Ai! Se sêsse!…
Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dois se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e tu cum insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?…
Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!
Você realmente acha que esse poema teria o mesmo encanto, o mesmo ritmo e musicalidade, a mesma beleza, caso fosse escrito no registro formal da língua portuguesa, segundo a norma culta? Você o entenderia melhor se as palavras estivessem escritas da forma como aparecem no dicionário? A fruição, isto é, o prazer estético do poema seria o mesmo, caso todas as palavras fossem corrigidas?
Se você respondeu não a todas essas perguntas, parabéns, pois entendeu o propósito deste artigo.
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Foto de Claudia Salces. Na foto, Gerardo (é assim mesmo que se pronuncia na região onde o pai da autora nasceu), ao lado da estátua do poeta Patativa do Assaré.
Lindo texto, mamãe! Pq falar policiá faz todo sentido dentro das regras gramaticais da língua portuguesa! ahaophaoha
Você tem toda a razão, Sarah. Quando criança, ao falar "policiá", referindo-se a este profissional do sexo feminino, a tendência é acrescentar o a para marcar a oposição à palavra masculina "policial".