Prezado Otavio,
O ano era 1988 e eu estava no segundo ano de faculdade. Os amigos da república e eu decidimos assinar a Folha de S. Paulo, pois naqueles anos pré-Internet era a melhor opção para quem queria se manter informado e, mesmo que desperdiçássemos a maioria dos fatos ali estampados diariamente, pelo menos tínhamos o Paulo Francis para nos divertir com suas tiradas e nos assombrar com sua cultura. A Constituinte terminava seus trabalhos, Sarney envergava o modelito de plano econômico da estação, e a campanha para as eleições ainda estava longe de decolar.
A Folha era divertida, mais gostosa de ler que o Estadão, mais dinâmica, menos austera. O Clovis Rossi dividia a coluna de opinião com o saudoso Otto Lara Resende e a gente não sabia se gostava mais da sagacidade política de um ou da sabedoria do outro.
Tudo era bacana, bem organizado, bem distribuído nas páginas. As seções permitiam fluidez na leitura, e a editoração era algo cuja qualidade só compreenderíamos alguns anos à frente, quando as impressoras e editores de texto um pouco menos toscos chegariam aos nossos computadores pessoais. É claro que a Folha devia ter (muitos) defeitos naquela época — um amigo mais culto, seu xará, aliás, chamava o jornal de “Falha de São Paulo” e sonhava com poder assinar o Le Monde—, mas a gente era pequeno demais para conseguir notar.
Em 1989, vimos, assombrados, a estreia do Caio Tulio Costa como ombudsman e nos admiramos de um jornal que dedicava espaço para a autocrítica. Pouco tempo mais tarde, corremos para buscar a pipoca e para assistirmos a briga entre ele e o Paulo Francis que, pouco tempo depois, resultaria na migração deste para o Estadão. Meus amigos sentiram falta, mas a bem da verdade eu estava meio de saco cheio da empáfia e das sutis pitadas de racismo do Francis (coisas como “A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda a África nos deu até hoje”).
As brigas do primeiro ombudsman (do jornal e do Brail) com um dos mais influentes colunistas da época revelavam um ponto fundamental da Folha: o pluralismo. Para ficar em apenas um exemplo, conviveram na mesma página Delfim Neto e José Dirceu, e a tônica de ambos não podia ser mais díspar. Era de se admirar um jornal que não se entregasse ao conservadorismo escancarado, como no caso do Estadão, nem à oposição unilateral como o que na época se classificava como imprensa marrom (ou o Pasquim). Eu via os nomes do conselho editorial, com o seu no topo e me admirava de uma publicação que fazia questão dessa independência, dessa diversidade.
O manual de redação, que você defendeu mesmo debaixo de pauladas dos seus próprios jornalistas, chegou em casa um dia, pelo correio, e ficava exposto na estante. Essa pluralidade mandatória estava lá, estampada. Eu achava demais aquilo.
Sem falar no Datafolha, que logo de cara conseguiu se mostrar mais preciso e mais imparcial (naquela época) que qualquer outro instituto de pesquisa. Que IBOPE que nada.
Veio a eleição, foi-se o Lula, ficou o Collor, e a gente assistia pelas páginas da Folha as peripécias da Zélia, do Ibraim Eris, do Bernardo Cabral e daquela turma que não deixa saudades. Aliás, ri muito com as repercussões e com a crítica mordaz daquele Besame Muchodançado pela Zélia e pelo Cabral. Para um moleque de vinte anos, até a cobertura séria era divertida.
Eu não via você, Otavio, e estava longe de conhecer sua obra teatral e literária, mas sabia da sua influência sobre os caminhos da Folha. Admirava você de longe, do canto escuro da minha ignorância, enquanto engolia as edições diárias da Folha.
O Confisco deu em nada, a inflação voltou com verve renovada, a situação do país se deteriorou (mais uma vez). Collor tentou levar tudo no peito e no populismo e nesse momento fui atropelado por sua coragem e por sua postura democrática como se fossem um tanque de guerra desgovernado, ladeira abaixo. Eu era recém-formado, trabalhando no laboratório da IBM de Sumaré (SP) quando você publicou sua Carta aberta ao sr. presidente da República, um texto tão admirável e corajoso que saí do trabalho para comprar a edição (nessa época, eu já não assinava mais o jornal, sem tempo para aproveitar-lhe os conteúdos em função do novo trabalho que me consumia o dia inteiro). Tenho até hoje o primeiro caderno, que guardo com cuidado. O então senador Mario Covas fez questão de ler o texto na íntegra na tribuna do Congresso, e a repercussão foi fundamental para que pudéssemos apear Collor do poder pelas vias do impeachment. Achei engraçado ler, ontem, a mensagem de condolências de Collor na página eletrônica da UOL. É significativo que ele — logo ele — se manifeste com sua sem-cerimônia e cara de pau habituais, e que a Folha publique com tranquilidade. Um detalhe, claro, mas que evidencia o DNA da Folha.
Claro que a Folha não é perfeita, e nos tempos mais recentes tem sido mais fácil enxergar-lhe os defeitos. O confrade Guilherme lembra bem a omissão do jornal no imbróglio do Daniel Dantas, e as confusões recentes e estapafúrdias do Datafolha são evidências de que o jornal não é tão independente quanto almeja. Sim, continua sendo menos parcial que a vasta maioria dos veículos de imprensa do Brasil, mas está longe de ser o pináculo da independência, da imparcialidade. Nesses casos (e em inúmeros outros), a Folha não errou por falta de direcionamento, Otavio. Errou você em suas decisões de parcialidade e omissão. Fico triste, claro, mas ao mesmo tempo vejo que esses erros te dão uma dimensão mais cotidiana, mais humana. Você errou como todos nós erramos, Otavio. A diferença é que — diferentemente de nossos messias de plantão, encarcerados ou encasernados — você admitia seus erros.
Ainda assim, Otavio, não pode passar sem observação o fato de que a Folha é equidistantemente odiada pelos sicofantas do PT, do PSDB, do MBL, dos Black Blocs, do Bolsonaro, do Dória, do MST e de qualquer outra facção que se instale em nosso país. Uma publicação que desagrada, assim, a todas as opiniões figadais, está acertando em um nível muito fundamental.
E é aí que reside minha enorme gratidão a você, Otavio. Você me ensinou o valor de olhar para todos os lados de uma questão antes de emitir uma opinião. Muito palidamente, eu tento emular o que aprendi no Manual de Redação da Folha de São Paulo, não me entregando às paixões políticas sem analisar os vários lados de uma questão e as várias ações de uma personalidade política qualquer. E devo confessar, Otavio, que fico secretamente feliz quando recebo críticas de amigos e leitores da direita e da esquerda, em igual medida, em vários de meus textos. Não é nada comparável a você e à Folha, Otavio, eu sei. É pura empáfia minha, obviamente. Devaneios de um diletante, e nada mais. Mas o pouco — o desprezível — que eu tento produzir é fortemente sedimentado na necessidade de independência e equilíbrio que você, a Folha e o Manual de Redação incutiram em mim desde aqueles longínquos anos oitenta em que aprendi a ler o seu jornal.
Por tudo isso, Otavio, sou grato.
Descanse em paz.