Ouço gritos longos, agudos, acompanhados por um choro compulsivo, sofrido e falso. Meus pensamentos mal conseguem se conectar para produzir uma frase em meu novo texto e resolvo, então, ceder e assistir tal cena. Debruço na varanda, como quem anseia descobrir uma solução para aquele absurdo sonoro, quase um crime hediondo para meus ouvidos.
E vejo. Ah, claro, o garoto lindo dos cabelos cacheados chora, mais uma vez. E grita uma dor latente de uma carência imensa para alguém tão pequeno, novo e desprotegido da vida. A mãe grita de volta, muito e ainda mais alto. O primeiro impulso, sem noção e descabido, é a vontade de intervir e perguntar se aquilo era mesmo para ser uma competição ou apenas uma cena cômica e um tanto trágica, talvez o ensaio de uma peça teatral, mas me contive. Algo me disse que toda minha ironia, assim por diversão, seria uma gafe, algo proveniente de alguém muito insensível, rude. E, dessa vez, consegui transmutar minha raiva. A realidade é que eu estava apenas de saco cheio daquilo tudo, eu só precisava de silêncio para trabalhar, nada mais. Fechei todas as janelas, coloquei uma música latina super potente e sexy, mas nada disso, em absoluto, conseguiu abafar aquela maldita competição de grito familiar.
Então fiquei ali, assistindo, por pura falta de opção mesmo. E um contexto acalorado tomou forma para quem quisesse ouvir. Senti meus olhos tão arregalados de susto, vergonha alheia, ou mesmo algum pudor sem sentido, que quase pude estar ali presente, em cena. Nesse momento, percebi que outras pessoas saiam, delicadamente, nas varandas de seus apartamentos. E todos, enfim, ouvimos o guri ser espelho da mãe de forma decidida e viril:
— Moleque, já mandei você parar de gritar! Por quê diabos você grita tanto? Que inferno!– quase se podia ver a goela da criatura, tamanho o volume de suas palavras. A veia saltada na testa parecia ter vida própria e, pior, dava sinais de que explodiria a qualquer momento. Tive uma aflição instantânea a respeito.
— Eu grito porque você grita! Se você não parar, também não paro! – nele, a gente via todas as pequenas veias da garganta saltarem, assim de forma aterrorizante. Quase uma miniatura da mãe, talvez fosse.
A mãe parou, em choque, teve o rosto tomado por um vermelho quente, quase um roxo cor de beterraba. E desabou a chorar junto com ele. Houve quem gritasse para ambos subirem, houve quem gritasse palavrões, houve quem gritasse que ela era uma péssima mãe, e ainda gritaram que o guri era insuportável. Eram muitos os juízes, assim de forma gratuita e genuína, e muitas as condenações. Eu confesso que só consegui assistir àquilo tudo e pensar, refletir sobre muitas e distintas coisas. Tantos jurados ali, em suas varandas onipotentes, certos de que estavam certos, cobertos da raiva mais cega, arrogante e prepotente. Chegava a dar nojo. A raiva eu também tive por uns instantes, confesso, mas eis que, de repente, como num estalar de dedos, consegui sentir a possível causa daquilo tudo, em sua raiz mais profunda: a carência, pura, simples, sufocante e que atinge a todos nós, sem distinção, estava ali, gritando, pronta a ensinar alguma coisa a todos.
Será que os então réus do condomínio, naquela situação, mãe e filho, já não teriam o bastante para lidar entre eles? Era mesmo necessário todo o cruel julgamento alheio? Aquela mãe, que poderia estar ali frustrada, cansada, sozinha, já não teve o bastante ao ver seu espelho em seu próprio filho? Ninguém parou para pensar que ela estava ali dando o melhor que tinha nela, com tudo o que tinha no momento? Será que ela também não teve o mesmo padrão de gritos, quando menina e aprendeu só dessa forma? Veja, não estou aqui questionando formas de educar, nem tampouco dizendo que gritar é legal. Pelo contrário, odeio gritos em todas as suas formas, meus ouvidos ardem. O que estou levantando aqui é a reflexão a respeito de uma reação cruel e agressiva, que poderia ter sido mais generosa, ou no mínimo menos rude. Isso poderia acontecer se fosse levada em consideração a raiz daquela cena, a carência óbvia, escancarada ali. E se tudo na vida é um espelho, pelo menos para mim funciona assim, não seria aquela cena um espelho de algo para nós mesmos? Nós, os jurados das sacadas? Não seria somente uma forma de vermos naqueles personagens, o que de nós também precisa de atenção, bem como uma forma de vermos nossas carências esquecidas para aprendermos a acolher todas com generosidade?
E eu que nem sou mãe ainda, não achei justo condenar aquela mulher entregue à sua criança interior, que discutia com seu filho de igual para igual. Na real, quem sou eu para julgar ou condenar quem quer que seja? Afinal, ambas as crianças precisavam de colo, carinho, conforto e amor. Se não foi possível doar isso no momento, que meu silêncio tenha levado boas vibrações de luz, de paz. Eu amo as palavras, mas, por vezes, engolir uma a uma, é de grande gentileza para com o outro e de uma enorme bondade consigo mesmo. Outro dia, uma pessoa muito sábia e querida, que tem como missão cuidar do próximo com amor, e ela é todo amor, me fez a seguinte pergunta: se hoje você pudesse comer suas palavras, você seria nutrida ou envenenada? O silêncio pode ser uma representação de palavras caladas por sabedoria apenas. A nutrição da alma talvez venha muito daí. E uma alma nutrida exala compaixão, em sua forma mais amorosamente acolhedora.
Um ato de amor é simples, mas requer muita sofisticação. Amor é também compreender ao calar, sorrir por sabedoria, assistir com resiliência, respeitar por benevolência e empatia. Só quem se ama, ganha essa habilidade, e liberdade, de amar aos outros dessa forma, sejam eles quem forem e que escolhas fizerem.
É isso e é só.
Nada fácil. Não julgar, empatizar, acolher a raiva e, principalmente, saber calar e escutar... Deveríamos nos escutar, escutar o outro, pois uma escuta compassiva e ativa permite reconhecer o outro em si, acolhe. O nada fácil no início, na verdade, é o lugar comum, pois o dia-a-dia é difícil, o não-julgamento é difícil, a vida também o é. Hmmm Não é essa dificuldade toda, pois é simples silenciar, afinal "em boca fechada não entra mosca"!!! :) Silenciando, é possível que cada palavra saia no seu tempo, com mais valor e dê valor, à nossa vida e a de quem ouve. Abs!
Jaylei querido! Adorei as reflexões! Acho que julgar é inerente ao ser humano, mas só de ter consciência disso e se vigiar, já mostra muita evolução. Talvez seja um exercício para a vida toda. Sobre o silêncio, super concordo também! Grande abraço!