O romance de Ítalo Calvino surpreende pelo seu projeto ambicioso de ser um romance metalinguístico e, em alguns aspectos, superar esse conceito. Calvino, como o escritor representativo da literatura italiana do século XX, percebeu como poucos a busca dos autores de sua geração em estabelecer os novos rumos para a literatura na Itália recentemente formada durante o Pós-Guerra. Além dele, sempre devem ser lembrados outros dois escritores de renome: Cesare Pavese e Elio Vittorini, ao lado dos quais indica os aspectos fundamentais para entender o problema do romance italiano frente à produção literária em outros países.
O problema maior era a necessidade de estabelecer qual seria o modelo ideal de romance como o gênero literário de expressão dessa nova realidade e qual seria a língua literária a ser adotada na Itália. A Itália conservava naquele momento diferenças culturais em sua população e que são mais sensíveis quanto à existência de dialetos, que acentuam o problema da unificação cultural na composição social do país no período. Usar um ou mais dialetos de maneira fluente, em um gesto ousado de mesclá-los em uma narrativa, foi um desafio para os escritores desta geração. É fato que Calvino consagrou-se, a um só tempo, como o autor maior de sua geração, um dos escritores a retratar o período da 2a Guerra Mundial e a Resistenza (juntamente com outros, mas em especial, ao lado de Beppe Fenoglio, que expuseram muito bem a experiência como partisan) e como aquele que viria a ditar os rumos da produção literária a partir da década de 1960.
Há, em Calvino, a busca de parâmetros novos para um romance sem as amarras estéticas do Realismo tão presentes nas obras de escritores consagrados, como Lampedusa, ou mesmo em contemporâneos como Vittorini, em que já havia a consciência dos limites. Também não eram satisfatórias as leituras marxistas, que pautaram os anseios idealistas da jovem intelectualidade italiana no pós-2a Guerra Mundial. Seu primeiro romance, Il sentiero dei nidi di ragno, em 1947, marca sua estreia nesse relato sobre a experiência do combatente partagiano, do engajamento popular no movimento de resistência italiana, a partir da perspectiva de uma criança. Ali se apresenta uma de suas maiores referências literárias, o escritor norte-americano Ernest Hemimgway, com o qual se identificaram vários autores de sua geração ocupados em retratar a Resistenza.
Nesse sentido, o romance Por quem os sinos dobram tornam-se influência maior em um primeiro momento, o que é endossado pelo fato de que Calvino foi um dos responsáveis pela tradução e publicação da obra completa de Hemimgway na Itália inclusive de seus contos. Há um forte indício de que as narrativas curtas, esses contos recheados de referências autobiográficas ajudaram Calvino a estabelecer a forma narrativa que ele se propusera experimentar.
Logo após seu primeiro romance, Ítalo Calvino sabe da necessidade de renovação das formas de expressão de parte da intelectualidade italiana que não mais coadunavam com a mera crítica engendrada através do uso dos preceitos deterministas, por demais ultrapassados para retratar as nuanças da nova sociedade na Itália. O arquétipo do burguês, também tão problemático aos romancistas anteriores de ser reformulado aos moldes contextuais da conturbada Unificação Italiana, já não era adequado.
Assim, Calvino, em sua busca por um romance moderno, sabe bem que as amarras literárias momentâneas seriam superadas com a sua tentativa (bem-sucedida) de decomposição da narrativa. Em um de seus discursos transcritos, ele evidencia a necessidade de desconstruir a estrutura típica do romance até então, se pensado como gênero literário. Calvino entende a narrativa como fruto de experimentação entre os elementos da linguagem, isto é, as possíveis combinações que a língua impunha ao narrador, mas que poderiam ser levadas ao seu limite, ou mesmo, que esses limites poderiam ser transgredidos:
(…) O narrador começou a proferir palavras não para que os outros lhe respondessem outras palavras previsíveis, mas para experimentar até que ponto as palavras podiam combinar-se umas as outras, formar-se umas das outras, para deduzir uma explicação do mundo pelo fio de todo discurso-conto possível, dos arabescos que nomes e verbos, sujeitos e predicados, desenhavam, espalhando-se um a partir do outro. (…) O narrador explorava as possibilidades implícitas na própria linguagem, combinando e trocando as figuras e as ações e os objetos sobre os quais estas ações podiam se exercitar. Delas, vinham para fora algumas histórias, construções lineares que apresentavam sempre algumas correspondências, algumas contraposições: o céu e a terra, a água e o fogo; os animais que voam e aqueles que cavam buracos, cada termo com sua bagagem de atributos, um repertório de ações. O desenvolvimento das histórias permitia certas relações entre alguns dos vários elementos e não outros, certas sucessões e não outras: a proibição devia ver antes da transgressão, a punição depois da transgressão, o dom dos objetos mágicos antes da superação de provas.[1]
Seguindo esse princípio, Calvino fez a opção pelo resgate da fábula, do conto fantástico como parâmetro de suas narrativas curtas. Nessa tentativa bem sucedida de estabelecer uma irracionalidade na estrutura de um texto, como fruto das relações entre unidades mínimas. Por isso mesmo, ele previa que as unidades mínimas de seu texto deveriam ser reutilizadas em combinação, de modo a formar novas estruturas, desde que respeitados os limites estabelecidos previamente.[2] Reconhecidas e dominadas esta unidades mínimas e o número finito de possibilidades de narrativas que suas combinações permitem, Calvino propõe o conceito de que, dada esta previsibilidade, o escritor é de fato uma máquina escrevente, produtora e reprodutora de narrativas mínimas que se repetem, sem que isto signifique o fim da literatura como arte. Pelo contrário, ele afirma que a literatura e a produção narrativa sempre foi assim, pois, ao contrário de uma ingênua imagem do escritor como gênio, de inspiração divina, o escritor é somente aquele responsável por explicitar uma determinada estrutura narrativa/combinação ou cadeia de combinações.
Podemos dizer que Se um viajante numa noite de inverno (Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007) é exemplo dessa concepção de literatura: Calvino tentava, em suas elucubrações, escapar às fronteiras que a linguagem impõe, o que é, em suma, o cerne da atividade literária: o estabelecimento do mito.
O mito é a parte escondida de cada história, a parte subterrânea, a zona ainda não explorada, porque ainda faltam as palavras para chegar até lá. Para contar o mito não basta a voz do narrador no encontro tribal de todo dia; são necessários lugares e épocas especiais, reuniões reservadas; só a palavra não basta, é preciso o concurso de um conjunto de signos polivalentes, isto é, de um rito. O mito vive de silêncio mais do que de palavras. Um mito calado faz sentir sua presença no narrar profano, nas palavras cotidianas, é um vazio de linguagem que aspira as palavras para um vórtice e dá à fábula uma forma.
Desse último conceito advém a importância da literatura, apesar de sua aparente descaracterização afirmada por Calvino: mesmo que previsível e independente da influência da personalidade do autor, a narrativa pode, em algum momento, ser revestida de um significado que foge à objetividade. Ao rever os impulsos que marcaram seu primeiro romance, Calvino, já consciente, havia dito:
Talvez, no fundo, o primeiro livro é o único que importa, talvez precisasse escrevê-lo e pronto, a grande arrancada só se dá naquele momento, a ocasião para que você se exprima apresenta-se somente uma vez, o nó que você carrega dentro de si mesmo ou o desata naquela vez ou nunca mais. Talvez a poesia seja possível somente em um momento da vida que, além do mais coincide com a extrema juventude. Passado aquele momento, se você se expressou ou não (e não o saberá senão depois de cem, cento e cinqüenta anos; os contemporâneos não podem ser bons juízes), dali em diante os jogos estão feitos, você não conseguirá fazer outra coisa a não ser arremedar os outros ou a si mesmo, não conseguirá mais dizer uma palavra verdadeira, insubstituível…[3]
Outro exemplo desse exercício é a novela O cavaleiro inexistente (Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2005) em que as peripécias do cavaleiro Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corberntraz e Sura (???), é o par de França, membro da cavalaria de Carlos Magno que, de tão perfeito no exercício da sua função (na guerra, na gesta, na corte amorosa) que… Não existe! Isso mesmo: o cavaleiro é a armadura vazia, invólucro sem as carnes que lhe restituiriam a humanidade que ele próprio, em sua demanda, busca resgatar quando sua honra corre risco. Então segue ele e seu cavalariço Gurdulu, como os cavaleiros das canções de gesta e como um Dom Quixote – inspiração direta de Calvino – em peripécias hilárias:
Ainda era confuso o estado das coisas do mundo, no tempo remoto em que esta história se passa. Não era raro defrontar-se com nomes, pensamentos, formas e instituições a que não correspondia nada de existente. E, por outro lado, o mundo pululava de objetos e faculdades e pessoas que não possuíam nome nem distinção do restante. Era uma época em que a vontade e a obstinação do existir, de deixar marcas, de provocar atrito com tudo aquilo que existe, não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nada com isso – por miséria ou ignorância ou porque tudo dava certo para eles do mesmo jeito – e assim uma certa quantidade andava perdida no vazio. Podia até acontecer então que num ponto essa vontade e consciência de si, tão diluída, se condensasse, formasse um coágulo, como a imperceptível partícula de água se condensa em flocos de nuvem, e esse emaranhado, por acaso ou por instinto, tropeçasse num nome ou numa estirpe, como então havia muitos disponíveis, numa certa patente da organização militar, num conjunto de tarefas a serem executadas e de regras estabelecidas; e – sobretudo – numa armadura vazia, pois sem ela, com os tempos que corriam, até um homem que existia corria o risco de desaparecer, imaginem um que não existia… Assim havia começado a atuar Agilulfo dos Guildiverni e a esforçar-se para obter glórias[4]. (p. 31)
Essas narrativas são exemplos de como Calvino concretiza sua pretensão como escritor, tendo em mente o objetivo da escrita, que é a leitura, e esta somente, renunciando a qualquer traço que o aproxime de um elogio a si mesmo.
[1] CALVINO, Ítalo. Cibernética e Fantasmas. Apontamentos sobre a narrativa como processo combinatório de Ítalo Calvino, 1967.
[2] BERARDINELLI, AFONSO. “Calvino moralista ou como permanecer sãos depois do fim do mundo” in Novos Estudos Cebrap, no. 54, julho, 1999.
[3] PESSOA NETO, ANSELMO. Prefácio a Il sentiero nidi di ragno in Ítalo Calvino: As Passagens Obrigatórias. – Goiânia, Editora UFG, 1997.
[4] CALVINO, Ítalo. O cavaleiro inexistente. Trad. Nilton Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Fui, adorei. Meu mestrado vou sobre "Se numa noite de inverno, um viajante". Em 1995 descobri esse livro e me encantei com as discussões sobre a interação autor, leitor e a materialidade de escrita, ou seja, e essência do romanesco. Parabéns pelo texto! Abraço.
Oi, Inês! Suas palavras contam bastante. Obrigado!
Que vontade de ler mais Calvino! É o efeito de uma boa resenha. Um abraço, meu caro!
Irmão, obrigado! Beijo no coração!
Para quem ainda se interessa por Calvino, uma editora portuguesa lança um livro de viagens dele, nos EUA dos anos 1950 e 1960: http://www.dn.pt/artes/interior/o-livro-que-italo-calvino-nao-quis-revelar-5468881.html
Oi Guilherme, gostei, sem excessos que cansam.
Obrigado, Cida. Vindo de você é um alento, para encontrarmos o ponto de equilíbrio ideal para os textos do portal. Abraço e volte sempre!