É muito fácil comprar uma arma (ou uma dúzia) no estado americano de Nevada. De acordo com um artigo recente no The Independent, o estado é conhecido por seu “turismo de metralhadora”.
Não há necessidade de licença para a compra de rifles, e a licença para se portar um revólver ou pistola dá ao cidadão o direito de carregar esta arma abertamente em locais públicos: bares, restaurantes, hotéis, igrejas, e até mesmo edifícios do governo. Armas podem ser compradas em lojas, de particulares e mesmo pela Web.
Não se pode comprar armas automáticas no estado de Nevada — ou em qualquer outra parte dos EUA, uma vez que o comércio desse tipo de arma foi proibido por lei federal em 1986 —, mas não há restrição para o número de balas que uma arma pode armazenar. Uma arma automática atirará em rápida sucessão todas as balas, até esgotá-las, enquanto uma arma semiautomática (permitida em todo território americano) requer que o atirador puxe o gatilho a cada tiro. Mas há um detalhe interessante: apesar de ter seu comércio proibido, a propriedade de armas automáticas ainda é permitida, e é permitido por lei carregar abertamente uma metralhadora em público no estado de Nevada.
No caso do tiroteio de Las Vegas, pela quantidade de mortos (59, pela última contagem, sem incluir o atirador) e feridos (527, pela última contagem) e pelo relato de testemunhas, o atirador Stephen Paddock, 64, não usou armas automáticas para realizar o massacre, mas sim um dispositivo chamado bump fire stock, que é acoplado ao gatilho de uma arma semiautomática, efetivamente transformando-a em uma arma automática, ou seja, em uma metralhadora. Esses dispositivos têm sua venda liberada em todo os território americano.
Veocê consegue perceber como são fáceis a compra e o porte legal de armas no estado de Nevada? Ótimo, guarde isso, por enquanto.
Observe agora um dos argumentos dos defensores das armas para a facilitação de acesso a elas. Em tradução livre: a melhor resposta para um cara mau carregando uma arma é um cara bom carregando uma arma. O raciocínio afirma que, ao invés de regulamentar e limitar o acesso às armas, o governo deveria facilitar esse acesso, pois em uma situação em que um doido começa a atirar, um cidadão de bem, armado, poderia resolver o caso, “neutralizando” (eufemismo para “matando”) o perpetrador do tiroteio.
Esse mote falhou miseravelmente em Las Vegas, apesar de todo o acesso que “bons cidadãos” têm, permitindo-lhes comprar e portar armas no estado de Nevada. A facilidade de se portar legalmente uma arma salvou exatamente zero das 59 vidas estupidamente desperdiçadas em Las Vegas. Não é para menos, observe, na foto de Lucy Nicholson, da Reuters (abaixo) a visão do hotel Mandalay Bay que um “bom cidadão com uma arma” teria na hora do tiroteio:
A distância do centro da área atingida pelo atirador até o hotel é de aproximadamente 400 metros. É razoável acreditar que o tal “bom cidadão com uma arma” teria condições de fazer alguma coisa? Se mesmo diante de toda a confusão esse cidadão tivesse um rifle de alta potência com uma mira telescópica, essa seria a visão que ele teria do local de onde vinham os disparos (região escura à direita, na foto de John Locher, da Associated Press):
Imaginar que um “bom cidadão com uma arma” pudesse fazer alguma coisa nesse caso beira o delírio.
A fantasia do “bom cidadão com uma arma” é perigosa e, quando não é absolutamente ineficiente, como no caso de Las Vegas, tem o potencial de fazer mais vítimas. O tal “bom cidadão” estaria adicionando balas a um tiroteio em local público (uma escola, um shopping), com gente correndo desesperada para todos os lados. O que poderia dar errado nisso? Quase tudo, infelizmente.
Não que fosse necessário mais algum tipo de demonstração, mas a fantasia do “bom cidadão com uma arma” é apenas uma enorme e perigosa balela, que só serve aos interesses dos grupos que visam lucrar com a venda de armas.
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