Há poucas semanas, chegou à Netflix o documentário Behind the Curve, do diretor norte-americano David J. Clark (em português, A Terra é Plana). O título original é um trocadilho que brinca com duas ideias: aplica-se à Educação, em que os alunos piores ficam para trás na curva de Gauss (distribuição normal) que divide os alunos em função de seu aproveitamento escolar; aplica-se, também, ao fato de que os terraplanistas não acreditam que há uma curvatura em nosso planeta, que — na visão deles — ao invés de ser um globo, é achatado como uma panqueca.
A bem da verdade, estou de saco cheio dessa história de Terra Plana. É nada mais que um movimento ignorante, alicerçado na ignorância, cujos líderes têm como objetivo ganhar dinheiro no YouTube, ao invés de buscarem a verdade dos fatos. Alguns deles, inclusive, já realizaram experimentos demonstrando a mais que óbvia curvatura planetária e o mais que óbvio movimento planetário e, ainda assim, dão sequência ao seu desserviço de espalhar fantasias e perpetuar uma mentira tão sem sentido que seria muito engraçada, se não fosse tão perigosa (mais sobre isso logo ali na frente).
Por tudo isso, comecei a ver o documentário já sem muita paciência. E esse desconforto só cresceu quando, logo nas primeiras cenas, aparece a figura triste de Mark Sargent, autoproclamado líder da Terra Plana, em uma praia, dizendo que basta olhar ao redor para perceber que estamos em um planeta plano, que não tem curvatura. Ouvimos alguns dos “argumentos” de Sargent, bem como sua descrição de como a Terra “realmente é”: uma superfície plana, circular, com o Polo Norte no centro, e uma imensa barreira de gelo no perímetro exterior, impedindo que a água dos oceanos caia. Nesse modelo (o mais aceito entre os terraplanistas, apesar dos flagrantes problemas que apresentaria se fosse real), a atmosfera (ou, como eles deveriam dizer: atmosplana) é mantida no lugar por um enorme domo transparente e semiesférico que cobre o planeta todo. O Sol e a Lua são luzes fortes que ficam dentro do domo, a poucas dezenas de quilômetros acima de nossas cabeças. Em suma: para os terraplanistas, nosso planeta é um imenso domo como o do filme The Truman Show, sendo que o resto — o fato de que a Terra é, na verdade uma esfera levemente achatada nos polos — é uma conspiração da NASA.
Sargent dá sequência à sua ladainha sem sentido, mas aos poucos vamos percebendo que o foco do documentário não é a Terra Plana, mas sim os terraplanistas. Entendemos que Sargent caiu nesse buraco depois de se aproximar de outras teorias da conspiração. A princípio achou a ideia da Terra Plana absurda, mas ao tentar derrubá-la, descobriu que não conseguia e passou de opositor a defensor. Sargent é solteiro e mora com a mãe, uma senhora simpática que obviamente ama seu filho e o encoraja como toda mãe encoraja a fantasia de seus pequenos, quando são crianças. Mães são outro departamento, sempre.
De Mark Sargent somos levados a conhecer outro membro fundamental ao movimento da Terra Plana: Patricia Steere, que tem um podcast semanal em que discute a Terra Plana e outras “batatas quentes”, em seu próprio dizer. Descobrimos que Mark e Patricia se conheceram em função de seus podcasts e inicialmente houve uma atração mútua. Contudo, Patricia rapidamente colocou Mark na “zona da amizade” depois dos primeiros contatos. Ao longo do documentário, é perceptível que apenas a moça está confortável com essa situação, o que pode ser percebido por vários olhares lânguidos de Mark em sua direção. Nesse ponto, já não presto mais atenção aos “argumentos” dos terraplanistas, mas sim à dinâmica de suas interações sociais.
Outros proeminentes defensores dessa baboseira nos são apresentados: Nathan Thompson, o religioso que “treina” seu cérebro recitando os estados dos EUA enquanto mantém no ar uma bola de golfe, rebatendo-a em duas marretas; Matt Boylan, que afirma aos quatro ventos ter sido o originador do movimento, apesar de ser de conhecimento que a Terra Plana é uma ideia defendida há séculos; Bob Knodel, que se diz engenheiro e se dizia piloto comercial, um título que ele não se atribui mais, depois que ficou claro que ele nunca pilotou um avião comercial em sua vida; Jeran Campanella, dono do canal “Jeranism”, no YouTube, um dos terraplanistas que mais capitaliza em cima de sua insânia, monetizando o quanto pode seu canal de vídeos.
Essas personagens são apresentadas sem o viés da ridicularização, como seres humanos que têm ideias e opiniões, agarrando-se a elas para formar sua visão da realidade. Suas histórias pessoais os mostram não como caricaturas, mas como pessoas comuns, com qualidades e defeitos como qualquer um de nós. O documentário faz um trabalho exímio de humanização desses indivíduos, a ponto de criar empatia entre eles e o telespectador — um fato, em si, monumental, penso eu.
As histórias pessoais dos terraplanistas são entrecortadas pela visão de cientistas de vários campos: físicos, astrofísicos, médicos, psicólogos, jornalistas especializados e artigos de divulgação científica, e por aí vai. Todos têm o cuidado de refutar com veemência as estapafúrdias ideias da Terra Plana, ao mesmo tempo em que tratam com carinho e respeito os terraplanistas: o mesmo carinho e respeito que devemos a qualquer paciente sofrendo de um transtorno mental qualquer. A doença é triste e deve ser combatida, mas o doente é só isso: um doente.
E a doença da teoria da conspiração é tão triste e tão grave que eles acabam até atacando-se mutuamente, enxergando inimigos entre os que defendem suas ideias. Patricia Steere, por exemplo, é atacada como sendo uma “isca” para seduzir homens para o movimento da Terra Plana, ao mesmo tempo em que é uma agente a serviço da CIA, o que pode ser visto claramente em seu próprio nome: PatriCIA. E aqui vemos que nem quando e feitiço volta-se cruelmente contra o feiticeiro os terraplanistas conseguem enxergar seus erros gritantes. Acusada de ser uma infiltrada do governo no movimento da Terra Plana, Patricia reage apresentando evidências de que é quem diz ser: ela mostra sua certidão de nascimento, suas fotos de infância, fotos de sua residência para provar quem realmente é. De nada isso adianta, pois seus opositores afirmam que uma agente da CIA não teria dificuldades em forjar uma identidade. Patrícia aponta a paranoia de seus pares, mas rapidamente rejeita a noção de que sofre da mesma paranoia com relação ao formato da Terra.
Mark Sargent também tem um momento de confronto com a realidade, quando compara os terraplanistas que abandonaram o modelo do globo à personagem Truman, de The Truman Show, que abandona o domo em que vivia porque não tinha nada a perder. “Se ele fosse o prefeito da cidade, provavelmente teria insistido em continuar vivendo sua fantasia, pois teria muita coisa a perder ao abandoná-la”, afirma Sargent. O diretor, então questiona: “Mas você não é uma espécie de prefeito da Terra Plana?”, o que deixa Mark pensativo por alguns segundos. Ele se recompõe e afirma que jamais seria capaz de abandonar o movimento da Terra Plana, mas não sem antes entender que ele próprio é vítima da teia de fantasias que ajudou a tecer.
O documentário apresenta, ainda, dois momentos em que os próprios terraplanistas — em busca de “evidências” de sua teoria — acabam por demonstrar que a Terra é obviamente uma esfera que se movimenta no espaço.
O primeiro deles é Bob Knodel, que afirma que a Terra é estática, e consegue a doação de um giroscópio de precisão (baseado em feixes de laser) que custa 20 mil dólares (por volta de 70 mil reais). Um giroscópio consegue ficar imóvel mesmo quando colocado em um corpo móvel, podendo ser usado para mostrar o quanto esse corpo se deslocou. Os giroscópios baseados em laser são usados, por exemplo, para detectar movimentos de aeronaves em voo, tais como inclinação vertical e horizontal. Bob aponta que “se” a Terra girasse 360opor dia, um giroscópio deveria ser capaz de identificar uma variação de 15opor hora. O giroscópio de Bob capta exatamente essa variação. Bob atribui a variação esperada ao “movimento do céu” (seja lá o que for isso), e encapsula o giroscópio em uma gaiola de metal, para evitar os “raios estelares” em movimento. Resultado: a mesma variação de 15oé constatada. Alguém dá a ideia de que uma gaiola de bismuto (supostamente por suas capacidades diamagnéticas, imagino) como uma maneira de evitar o efeito dos tais raios estelares, mas o efeito persiste. Mesmo diante das enormes evidências à sua frente, Knodel resiste, e inclusive é pego em flagrante pedindo a um terraplanista que não divulgue essa informação.
O segundo é Jeran Campanella, que coloca duas placas com um buracos, espaçadas algumas centenas de metros, com uma fonte de luz de um lado e uma câmera para captar a imagem do outro, também distantes das placas algumas centenas de metros. O experimento é simples e, quando realizado corretamente, só permite a passagem da luz pelos buracos se tanto a câmera quanto a fonte de luz estão alguns centímetros acima do nível dos buracos, uma vez que a terra se curva. Jeran coloca a fonte de luz no nível dos buracos, e a câmera do outro lado não consegue captar a luminosidade (o que aconteceria se a Terra fosse plana). Ele, então, pede que o foco de luz seja levantado “acima da cabeça” de seu assistente. Resultado: a luz é vista através dos buracos, demonstrando claramente a curvatura da Terra.
Jeran Campanella e Bob Knodel, é bom frisar, estão sendo fritos em óleo quente por seus colegas terraplanistas em função desses experimentos mostrados no documentário, sendo acusados de agentes do governo e coisa piores, “plantados” para desacreditar o movimento.
No fim do documentário, entendemos que os terraplanistas são um grupo que se viu ameaçado pelo mundo como ele é e que decidiu se esconder atrás de uma fantasia que lhes dá um senso de comunidade e um propósito na vida. Isso para a maioria dos terraplanistas anônimos, porque os conhecidos têm, além disso, o incentivo financeiro de seus canais do YouTube, fontes de renda das quais é difícil desistir, mesmo para os que trombaram com evidências de que a Terra não é plana.
Há, porém, um perigo na humanização dos terraplanistas promovida pelo documentário. Em que pese serem, de fato, doentes necessitados de compaixão, são também espalhadores de sua doença, o que tende a ser um problema para todos nós. Primeiramente porque ensinam a negar a ciência mais básica em função de teorias de conspiração, espalhando a ignorância. Em segundo lugar — e talvez até mais importante — porque esse “modelo” de negação da realidade é transbordado da Terra Plana (um assunto inócuo) para outras áreas bem mais problemáticas, como no caso do movimento anti-vacina, que vem provocando o ressurgimento de doenças antes controladas e a caminho da extinção, como no caso do sarampo e da poliomielite. O movimento da Terra Plana funciona como uma “droga porta de entrada” para o movimento anti-vacina, e aí entramos em uma seara bem complicada.
Aí minha compaixão termina rapidinho.
Oi Ruy, blz? Fico com essa sua última frase. "O movimento da Terra Plana funciona como uma “droga porta de entrada” para o movimento anti-vacina, e aí entramos em uma seara bem complicada." Penso na necessária empatia pela pessoa ignorante, doente, que precisa adequar o mundo à sua visão para se sentir parte do mundo. Porém, da inocente terra plana, advém outras hipóteses, como a da vacina e por que não da velha supremacia de raça, de religião etc? Afinal, as provas científicas não são necessárias...
Esse é meu maior problema com os defensores de teorias de conspiração que suprimem sua capacidade de pensamento crítico, Jaylei: abrem as portas para todo tipo de baboseira, sendo que algumas delas causam danos a outras pessoas. No mais, muito bom ver você por aqui. Obrigado pelo comentário!