TEMPO, ATENÇÃO, SILÊNCIO, INTIMIDADE E PRIVACIDADE. Vivemos em um mundo onde a noção do que é “valioso” está em transformação. Historicamente, chamamos de “precioso” ou “valioso” coisas que são raras e especiais: alguns minerais como ouro, prata, platina, cristais rochosos como diamantes e rubis. Seguindo a mesma lógica, esses itens impalpáveis, imateriais, são muito raros e especiais, e estão tornando-se as “commodities” mais valiosas do século 21. Vamos falar aqui sobre cada uma dessas novas medidas de valor e sua influência no mundo atual.
INTIMIDADE
Como definir intimidade no século 21?
O conceito de intimidade tem muitos pontos em comum com a noção de privacidade, e é fácil confundir essas duas noções.
Digamos que privacidade é mais abrangente, e mais prática, do que a intimidade. A privacidade, que é o tema do próximo texto dessa série, inclui uma série de aspectos que são relacionados com impacto econômico e com atividades criminais, como o furto de dados pessoais.
A intimidade existe em uma esfera mais emocional, e isso torna mais complexa sua definição. Penso nos versos da grande poeta Cecília Meireles, falando sobre liberdade: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.” É mais fácil, portanto, definir a falta de intimidade do que sua presença, sua essência.
No mundo pós-industrial, a intimidade é um bem muito raro. Há um século e meio ou mais, nutrimos uma impessoalidade nas relações humanas, com a justificativa questionável de que desse modo teríamos uma sociedade mais eficiente e produtiva.
Temos com isso uma cordialidade tacitamente afetada no dia a dia, uma imitação ou emulação de intimidade nas relações cotidianas – seja com prestadores de serviços, vizinhos ou estranhos na rua. Respostas automáticas, sorrisos forçados, roteiros de perguntas e respostas. Todos nos acostumamos com isso ao longo do tempo, nos grandes centros urbanos.
Os moradores de grandes cidades sentem um choque ao visitar ou mudar para uma pequena comunidade. Em cidades menores, as regras de convivência são o principal indicador do conceito de intimidade. As relações são baseadas em familiaridade e confiança, indicando o modo como as pessoas firmam relacionamentos com estranhos: relações íntimas, mas não promíscuas, nem ingênuas. Em comunidades pequenas, uma violação de confiança representa uma ruptura profunda, geralmente irreversível. Não é como um problema de crédito financeiro, que pode ser restaurado por meio de um acordo comercial.
A intimidade é uma moeda do século 21 justamente porque seu valor social é muito elevado, e suas violações causam danos muito grandes. Enquanto a violação de privacidade pode ser exemplificada pelo furto de dados bancários ou detalhes sobre preferências de consumo, a invasão de intimidade é o acesso indevido à vida íntima do outro – sua sexualidade, suas opiniões políticas e morais, suas ideias sobre a sociedade. A violação de privacidade é geralmente motivada por ganância financeira, já a invasão de intimidade pressupõe uma tentativa de controle comportamental e moral sobre a vítima. Violar a intimidade se torna crime pelo abuso da confiança de outrem, motivada por chantagem ou extorsão.
Proteger a intimidade no século 21 é algo muito complexo e custoso. Mesmo pessoas notavelmente ricas e influentes já descobriram que é mais complicado blindar sua intimidade do que proteger seus dados financeiros e patrimoniais. Basta pensar no número de celebridades que tiveram suas “sex tapes” vazadas na internet – violações de intimidade cometidas por hackers ou pelxs próprixs parceirxs. Cenas de sexo com personalidades reconhecidas são em si uma grande moeda na nossa era, e dessa forma se espalham de modo muito veloz pelas redes sociais
Fama, poder econômico ou proeminência política e social não são suficientes para impedir as violações de intimidade. Um exemplo lapidar: a cantora e atriz Barbra Streisand se irritou com a divulgação de imagens de sua mansão na praia de Malibu, na Califórnia. Streisand processou o fotógrafo, que não era um “paparazzo”: Kenneth Adelman estava apenas documentando o processo de erosão na costa californiana, com o objetivo de alertar as autoridades públicas sobre o problema. As imagens da casa da cantora haviam sido vistas apenas seis vezes antes do início do processo, e depois da queixa de Streisand, esse número disparou para mais de 500.000 views no primeiro mês. O caso deu origem a um verbete enciclopédico sobre o tema, chamado “Streisand effect”. Apesar de rica e influente, Barbra Streisand não pode mais conter a difusão das imagens, devido ao caráter fluido e incontrolável da internet.
Presidentes de países, ministros, CEOs de grandes empresas, dirigentes de organizações públicas e privadas: todas as categorias de pessoas ricas e famosas sofreram com a violação de sua intimidade. Em alguns casos, essas pessoas foram flagradas cometendo delitos ou crimes. Em várias ocasiões, o crime foi cometido contra essas pessoas, ao expor comportamentos pessoais.
Quanto vale a intimidade no século 21, quando ela representa uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda?
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