Há um bom tempo (seguramente mais de dez anos), uma ideia me ocorreu. É bom frisar que o que se segue é produto de minha visão, e que minha visão está limitada à minha experiência e à pequena fatia da realidade a que tenho acesso. Ainda assim, apesar de estreita, não é leviana nem “chutada”.
Minha tese, em poucas palavras: a partir de 23 de agosto de 1991 não vivemos mais o que convencionamos chamar de Idade Contemporânea, mas sim em um novo período histórico, que não faço a menor ideia como será chamado pelas gerações futuras. Simples assim. Que fato ocorreu neste dia que justifica tão tectônica transformação? Neste dia a World Wide Web (ou simplesmente “Web”) foi aberta ao público.
Que evidências tenho para alicerçar uma hipótese desta monta? Vejamos.
Em primeiro lugar é interessante observar que a divisão de períodos históricos em Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea é arbitrária e se baseia em eventos que foram relevantes no contexto da Civilização Ocidental, ou seja, fortemente centralizado na Europa e suas proximidades.
Ainda assim, pela relevância global dos acontecimentos e de seus desdobramentos — e principalmente porque o surgimento da Web é uma força transformadora global e não local — tomo a liberdade de me ater à divisão ocidental clássica dos períodos históricos, a saber:
- Pré-História – da aurora da humanidade até cerca de 5.000 a. C. (invenção da escrita ou o início dos registros Históricos, a como o evento é referido;
- Antiguidade ou Idade Antiga–5.000 a.C. até a Queda de Roma, 476 d.C.;
- Idade Média – 476 d.C. até a Queda de Constantinopla, 1453;
- Idade Moderna – 1453 até a Revolução Francesa, 1789
- Idade Contemporânea – 1789 até os dias de hoje, supostamente
Os eventos de mudança de era histórica provocam profundas transformações na Civilização, o que pode ser observado em todos os momentos acima. Podemos, de maneira simplificada, sumarizar estas transformações em três aspectos:
- nas relações sociais
- nos meios de produção e
- nas relações econômicas
As transformações nas relações sociais podem ser vistas a partir do surgimento da escrita, uma vez que evento deu origem aos próprios conceitos de civilização e de sociedade. A sociedade se transformou ao longo do tempo, dando surgimento aos impérios e às expansões que vimos surgir e desaparecer no período. Foram muitos, mas certamente podemos destacar Egito, Mesopotâmia, Fenícia, Grécia, Roma. A cada sucessão as relações de poder se tornavam mais complexas, e estruturas sociais e econômicas puderam ser testadas e estabelecidas ou descartadas à medida que traziam vantagens ou deixavam a desejar para os impérios em expansão.
Mais tarde, com a Queda de Roma, profundas transformações nas relações sociais ocorreram com o fim da unidade imperial romana. A desagregação do império em inúmeras e instáveis unidades feudais com a ausência de poderes nacionais centrais e novas relações de servidão entre os donos das terras e os ocupantes e pequenos agricultores presentes nestas terras, representou a principal mudança nas relações sociais a partir da Idade Média.
Na mudança para a Idade Moderna, a restauração do poder monárquico e a ascensão da burguesia pontuaram outra profunda mudança nas relações sociais. O Renascimento marcou a retomada da marcha das ciências e das artes, e a Civilização Ocidental finalmente saiu do marasmo em que se viu atolada por quase um milênio.
Por fim, a última grande mudança a ocorrer no contexto social da Civilização Ocidental deu-se a partir da Revolução Francesa, com o declínio do absolutismo e a consolidação da burguesia como camada socialmente dominante.
Nos quesitos meios de produção e relações econômicas não foi diferente. O surgimento da escrita marca, também, o surgimento das relações de troca que levariam ao comércio, bem como a mudança da subsistência baseada em caça e agregação de alimentos para um modelo de produção agrária básica. As expansões das relações econômicas durante os impérios geraram meios de produção baseados na exploração de populações locais por meio da força, e mais tarde deram lugar à retração e à localização da Idade Média, em que o modelo produtivo voltou a ser basicamente agrário. A Idade Moderna viu o nascimento e os resultados das Grandes Navegações, e a ascensão do Capitalismo Comercial. Por fim, a Idade Contemporânea surge na esteira da Revolução Industrial e a evolução das relações do capital para acomodar os novos meios de produção.
Observemos, agora, o que ocorreu — e ainda ocorre — a partir da disseminação e popularização da Internet por meio de sua interface mais popular: a Web.
As relações sociais mudaram? Sim, e continuam mudando, pois a comunicação instantânea gera a possibilidade de diálogo entre pessoas que de outra forma jamais se conheceriam, ou mesmo teriam contato. Muito mais do que a televisão e o rádio — que são meios inerentemente unidirecionais de comunicação — a Internet e sua principal interface, a Web, permitem uma proximidade que de fato está modificando a forma com que nos relacionamos. Podemos, pela primeira vez, influir no conteúdo da comunicação de massa, deixar nossa parcela de contribuição nas discussões, e — mais importante — criar conteúdo que pode afetar a vida de milhões de pessoas pelo mundo afora. Hoje nos aproximamos de 4 bilhões de indivíduos de alguma forma conectados. Por mais que as situações individuais, sociais, políticas e econômicas destas 4 bilhões de pessoas possam diferir, o fato é que cada vez mais elas têm a oportunidade de aproveitar do manancial de informação e do fluxo contínuo de informação que é a Internet. Ainda estamos presenciando os primórdios das transformações sociais provocadas pela Web, mas certamente o potencial é mais do que palpável e já produz efeitos extraordinários.
Os meios de produção mudaram? Estão certamente mudando, e não há o que venha a brecar esta tendência. O átomo dá, em muitos casos, lugar ao bit: o valor produzido hoje inclui o conteúdo, e nos casos em que a matéria ainda tem uma presença, reintroduzimos em cena aquele indivíduo que perdeu sua relevância na Revolução Industrial: o artesão. A capacidade de criar produtos únicos ou direcionados, aliada ao meio de comunicá-los e comercializá-los traz a possibilidade de que aqueles que tenham habilidade para produzir e inclinação para encontrar e se encaixar em um novo modelo de negócios encontrem mercados que meros 20 anos atrás seriam inatingíveis. O autor norte-americano Chris Anderson, mostrou com clareza em seu livro A Cauda Longa que a Web nos permite acesso a um mercado global, e que neste mercado é possível produzir e vender mesmo que as quantidades sejam ínfimas para as plantas do modelo tradicional de produção. Se uma fábrica começa a mostrar interesse quando a perspectiva de produção é de, digamos 1.000.000 unidades, o produtor da internet consegue atender — com lucro — 1.000 clientes ou menos.Surgem os mercados especializados e os mercados vintage. Quer uma geladeira no estilo década de 50 com uma chopeira embutida? Quer comprar cartuchos para aquele seu Atari de 1982? Quer uma bicicleta estilo Penny Farthing do século 19 (aquelas com uma roda enorme e outra minúscula)? Tem quem fabrique e venda tudo isso e muito mais. Sem a possibilidade de atingir mercados globais, estes produtos de nicho jamais seriam viáveis.
As relações econômicas mudaram? Também estão mudando, certamente. No início da popularização da Internet, que coincide com o surgimento da Web a partir de 1991, o que vimos foi uma replicação dos modelos econômicos (e comerciais, e publicitários, e jornalísticos, e por aí vai) do mundo de “tijolo e cimento” no plano virtual. Quem esteve presente naqueles momentos iniciais da Web vai se lembrar de algo que tentava imitar a mídia impressa em seu formato e conteúdo, e os antigos catálogos de venda em suas ações comerciais. Até os cupons de desconto para o usuário imprimir e levar na loja para comprar o produto eram comuns. Contudo, um quarto de século depois, muitos outros modelos de negócio surgiram, únicos na Internet, só possíveis no meio digital. Para que comprar um CD se o que me interessa é a música? Aliás, para que comprar (possuir) a música, se posso usar um serviço que toca o que eu quiser onde quer que eu esteja? Produtos são transformados em serviços como nunca havia sido possível. E os diferenciais passam por aspectos em que antes pouco se prestava atenção: logística, velocidade, conveniência. Mais: produtos passam a ser plataformas de consumo, como no caso dos smartphones e tablets. Aliás, não é só nos modelos de negócio, nas formas de pagamento, nas plataformas de consumo. A proximidade propiciada pela Web permite que indianos prestem suporte a empresas americanas (ou de qualquer outra nacionalidade) como se estivessem na cidade ao lado, e não a um oceano e meio de distância. Contrata-se um serviço prestado no outro hemisfério sem que isso influencie negativamente na qualidade (como, aliás, é o caso do serviço de hospedagem deste site, o Confrariando), muitas vezes a custos mais baixos. E é só o começo. À medida que a tecnologia melhora, certamente que muito ainda vai evoluir nestas relações econômicas.
O fato é que as mudanças são tantas e tão profundas que, no futuro, nossos descendentes olharão para trás e enxergarão o marco de uma nova era. Estes marcos são sempre estabelecidos a posteriori (ninguém nos meses ou anos depois da Queda da Bastilha percebeu que as mudanças haviam sido tão fundamentalmente profundas), e penso que um século ou dois no futuro olharemos para trás e enxergaremos em 1991 o ano em que se iniciou a mudança.
Não penso que seja o início de uma era de “bonança” ou que as tecnologias de comunicação sejam a resposta a todos os nossos problemas. Não, como em toda era histórica, o início é caótico, e mesmo depois da consolidação, há coisas boas e ruins. Soluções e problemas. Um contexto dialético e contraditório, como sempre foi. Até porque não é a Internet que vai revogar a Natureza Humana.
E daqui para frente? Bem, estamos em águas não mapeadas. Não há como prever os acontecimentos, e teremos que navegar com o que conhecemos dos mares pelos quais passamos. Como no caso dos navegadores antigos, estamos diante daquela parte do mapa em que se lê “aqui há dragões”, que era a forma com que se descrevia o desconhecido. Rochedos e tempestades nos esperam, não há dúvida, mas novos caminhos, novos territórios, novas possibilidades certamente também estão lá. O certo é que, independente do que encontraremos, já nos lançamos a mais esta aventura.
Dragões, afinal de contas,sempre foram e sempre serão seres absolutamente fascinantes.
Essa é uma tese interessante, que dá uma dimensão nova para a Internet, mas que ignora muitos outros acontecimentos recentes que tem mais peso histórico. O 11 de setembro, por exemplo, é um marco mais apropriado para essa mudança histórica, não acha?
Prezado Luís Carlos, O 11 de setembro foi, é fácil perceber, mais "estrondoso". Certamente também provocou um certo desvio nas relações dos EUA com o mundo, o que — podemos argumentar — tem um certo peso nas relações mundiais. O terrorismo passou a ser uma preocupação diária dos estadunidenses, claro, mas penso que esta tendência é muito restrita quando expandimos nossa visão para englobar o mundo todo. Por outro lado, o 11 de setembro não deu origem a novos meios de produção, nem a novos modelos econômicos. É um fato relevante, claro, mas não é determinante no sentido dos períodos históricos, penso eu. Já a Web apresenta todas as características de um elemento de mudança histórica de grande monta, como eu argumentei. E levando em consideração que o início da Idade Contemporânea engloba elementos da Revolução Burguesa, da Revolução Francesa, e da Revolução industrial, não vejo outro acontecimento desde então de tão grandes implicações quanto o surgimento da Web. Outra coisa interessante que não coube no artigo: se esta mudança realmente se der em função do surgimento da Web, será a primeira vez desde a invenção da escrita que uma mudança de período histórico não se dá em função de um conflito. Nos casos da Queda de Roma, da Queda de Constantinopla, e da Revolução Francesa, todas as "novas eras" foram desencadeadas por conflitos de grande envergadura. Sob este prisma, é interessante observar que o surgimento da Web guarda características semelhantes com a invenção da escrita que vão além de suas características "pacíficas". Muito obrigado por sua participação!
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