FamO cineasta Andrew Niccol escreveu e dirigiu vários filmes notáveis. Entre eles, estão “O Show de Truman” (1998) e “Gattaca – Experiência Genética” (1997). Duas décadas depois, Niccol apresenta o “Anon”, na plataforma Netflix. Os três filmes formam um tríptico, ou um tipo de trilogia temática, criando um painelsobre de privacidade no mundo atual, que é uma das “moedas” mais valiosas no século 21 (já falei sobre isso anteriormente no Confrariando).
O termo “privacidade” em português é um estrangeirismo vindo do inglês “privacy”. Significa o direito à reserva de informações pessoais e da própria vida privada: “the right to be let alone” (literalmente “o direito de ser deixado em paz”), segundo a formulação do famoso jurista norte-americano Louis Brandeis.
A privacidade pode ser entendida como a capacidade do indivíduo de manter o controle sobre informações acerca de si mesmo. Isso inclui o direito de existir de forma anônima na sociedade, sem medo de punições por essa decisão. Em tese, o indivíduo não poderia ser coagido ou condicionado a abrir mão do direito à vida privada por empresas ou governos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos destaca o direito à vida privada em seu artigo 12, e essa noção é reforçada no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas. No Brasil, o tema está definido no Artigo 5º da Constituição de 1988, segue o trecho: “(…) são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
No mundo atual, a privacidade é cada vez mais esparsa e rara (e, portanto, valiosa). Muitas nações do mundo simplesmente aboliram (ou jamais reconheceram) o “direito de ser deixado em paz” de seus cidadãos. O exemplo mais notório é a China, uma superpotência econômica que monitora a maior parte das comunicações pessoais dos seus mais de 1 bilhão de habitantes. Mesmo as democracias ocidentais mais avançadas têm uma relação ambígua com a privacidade, com as corporações digitais (e governos) faturando bilhões de dólares com o tráfico de dados privados. E há milhares de casos recentes de “vazamentos” de dados pessoais arquivados por grandes empresas, que incluem números de cartões de crédito, extratos bancários, registros médicos outras informações sensíveis (e, portanto, rentáveis). Processos e multas não compensam os danos causados por essas violações à privacidade, que em muitos casos podem arruinar as vidas das vítimas.
Na trilogia de Andrew Niccol, os filmes mostram diferentes ângulos sobre o tema, com grande qualidade nas produções.
O primeiro filme é “Gattaca”, de 1997. A história se passa em um futuro próximo, onde a eugenia se tornou uma política de estado. Somente pessoas “geneticamente perfeitas” poderiam ocupar posições relevantes nessa sociedade, excluindo todos os cidadãos “inválidos”, ou seja, aqueles não programados pela tecnologia genética. A verificação de DNA é uma atividade rotineira e compulsória, com verificações em todos os ambientes. O protagonista da história é um “inválido” que quer provar que é tão capaz ou até melhor do que o padrão definido pelo sistema.
O segundo filme, “Truman’s Show”, de 1998, apresenta uma visão extrema sobre o fenômeno de reality shows como “Big Brother”. O protagonista (Jim Carrey) vive desde o nascimento em uma redoma gigantesca, o maior estúdio fechado do mundo, capaz de conter uma cidade inteira e todos os arredores. Truman é “propriedade” de uma empresa de entretenimento desde que nasceu, e sua vida se tornou o reality show maior audiência no mundo. Aos 30 anos de idade, Truman finalmente descobre que nunca teve um segundo de privacidade desde a infância, e cada momento essencial de sua vida foi cuidadosamente monitorado e planejado por uma equipe invisível de produção de TV, com o objetivo de vender publicidade. Truman se rebela contra esse roteiro e planeja uma fuga espetacular.
Duas décadas depois desses filmes de grande sucesso, Niccol refina sua visão sobre a (falta de) via privada em “Anon”.
O filme começa com um trecho do longo poema “Paracelsus” de Robert Browning, poeta britânico do século 19:
I give the fight up: let there be an end,
A privacy, an obscure nook for me.
I want to be forgotten even by God.”
(Em uma tradução livre: “Eu desisto da luta: que haja um final/Uma privacidade, um canto obscuro para mim/Eu quero ser esquecido até mesmo por Deus”)
Esse fragmento de poesia define a história contada no filme. A história se passa em um futuro próximo onde tudo e todos estão conectados por meio de uma versão da internet que abrange a sociedade toda. Uma “nuvem” onipresente e altamente sofisticada, com uma capacidade de processar e arquivar dados enormemente superior à de hoje (algo perfeitamente verossímil, segundo a Lei de Moore).
“Anon” é uma história policial, com os elementos característicos do gênero: há um crime misterioso, uma delegacia de polícia, um detetive encarregado do caso, há suspeitos. Mas a narrativa convencional é totalmente subvertida pelo contexto. A sociedade futurista apresentada em “Anon” supõe um estado de vigilância absoluta por meio da tecnologia. O detetive Sal Frieland (Clive Owen) usa o acesso privilegiado a dados privados (porque é um policial) para cumprir sua tarefa.
Frieland tem um encontro casual com uma pessoa, uma mulher (a atriz Amanda Seyfried, no papel de “the girl”), que surpreende o detetive por não estar conectada a essa rede onipresente de dados. Essa mulher sem nome ou dados disponíveis no sistema se torna a principal suspeita em uma investigação de homicídio, e a polícia cria uma armadilha para prendê-la. Mas tudo dá errado nesse procedimento policial que depende de um fluxo de informações íntimas para funcionar. A mulher sem nome é a maior suspeita, mas não é a culpada. O clichê é válido: o verdadeiro culpado é uma pessoa acima de qualquer suspeita, agindo por dentro da estrutura oficial.
Mas o foco essencial dessa narrativa é a relação entre o agente policial, a mulher anônima (em uma sociedade que aboliu o anonimato e o direito de cada indivíduo ser deixado em paz) e a própria sociedade definida por essa ficção especulativa.
“Anon” é uma visão crítica sobre um futuro próximo e plausível em boa parte do mundo. Muitas nações estão dispostas a cercear o direito à privacidade de seus cidadãos. Regimes totalitários querem controlar o fluxo de ideias consideradas como subversivas. Teocracias querem coibir heresias e questionamentos sobre a validade dos preceitos religiosos. Mesmo democracias ocidentais avançadas se valem de brechas legais para invadir a vida privada dos cidadãos – corporações privadas e órgãos públicos coletam um volume injustificável de dados privados para gerar lucros ou poder político.
O filme chama a atenção pelo cuidado com o design de produção para caracterizar esse futuro inquietante. Tudo e todos fazem parte de uma rede invisível a “olho nu”, mas que pode ser percebida pelas “lentes” de realidade aumentada que todas as pessoas usam. A Nova York mostrada no filme é estranhamente limpa e vazia, quase asséptica. A iluminação feérica e os painéis luminosos de publicidade estão ausentes – foram transferidos para dentro do olhar dos transeuntes. Cada objeto visto nas ruas apresenta uma “ficha” de meta-dados, detalhando desde modelos de automóveis até o valor nutricional dos lanches no carrinho de rua.
É interessante que as pessoas ainda usam carros e transportes como metrô para “ir ao trabalho”. Qual é o sentido de se deslocar fisicamente para ir a locais que podem ser simulados perfeitamente por realidade virtual? A impressão é de uma sociedade que se agarra desesperada (e futilmente) a estilos de vida extintos, hábitos que a tecnologia tornou obsoletos. Uma impressão de normalidade, como uma película de realidade reconfortante sobre um sistema muito mais vasto, complexo e assustador.
O diálogo final entre o detetive e mulher anônima é a assinatura do diretor Andrew Niccol. Frieland diz que se ela não é culpada de nada, não precisaria se dar ao trabalho de ocultar seus dados. Ela responde: “Eu não tenho nada a esconder, mas não há nada da minha vida pessoal que eu queira permitir que você veja”.
Comments: no replies