Mapa do Inferno, de Botticelli.
Seria o prenúncio dos próximos dias?
Ou purgaremos todos os pecados ao acabar com a corrupção?
Estamos no ápice de um processo que se desenrola pelo menos desde 2013, quando irrompeu um movimento de setores populares que reivindicava menos tarifas, mais serviços públicos e mais direitos.
Assim como Machado de Assis, posso dizer que por um tempo hesitei em escrever este artigo. Poderia ser encarado como mais do mesmo, jogo jogado. Mas pensando em Dante Alighieri, para quem os piores lugares do inferno são reservados aos que adotam posturas neutras em épocas de crise, resolvi escrever.
O movimento de 2013 foi potencializado pela oposição à direita que viu no grande espírito “Não vai ter copa” a chance de desgastar o governo e assim eleger um outro projeto, em 2014.
O plano fracassou e Dilma se reelegeu para mais quatro anos, com uma campanha mais à esquerda, no segundo turno. Página virada? Não, os novos capítulos seriam ainda mais caricatos. Voltaremos a isso daqui a pouco.
Falei em esquerda e direita… e esta é a chave para entendermos a luta política que se trava no Brasil. Esta divisão, para muitos, está superada. Não compartilho desta ideia. E o capital nacional e internacional também não e, por isso, resolveram que o governo trabalhista deve ser deposto. Não penso em termos maniqueístas, como simples bem e mal, mas dialeticamente, como história em movimento, fruto de contradições. E estas mesmas contradições se apresentam no Brasil, desde a década de 1960 – para ficar no período determinado pelo título deste artigo.
Guardadas as devidas proporções e situações concretas de cada período, existem dois grandes projetos em disputa no Brasil. Quem não entende esta disputa é levado a pensar que o problema se resume ao combate à corrupção de um único partido, culpado de todos os males. E esta interpretação ganhou força, pois foi meticulosamente construída – desde 2005 e chegou ao ápice agora em 2016. Outra visão, que parece radical, mas que no fundo presta-se ao conservadorismo, é dizer que nada muda, que tudo é igual. Neutralidade, o inferno te espera…
Um destes projetos – ainda na década de 1960 – pretendia aumentar a dependência do Brasil dos setores dominantes do capitalismo, em especial dos EUA. Pregava um crescimento rápido, mas subordinado, baseado em empréstimos internacionais, facilitação da transferência de lucros, concentração de renda, terra e poder a fim de estimular investimentos. Seus defensores, derrotados anteriormente, achavam que, com a vitória de Jânio, finalmente implantariam seu programa. Com sua renúncia, também num 25 de agosto, abriu-se a porta para o golpe parlamentarista que limitou os poderes de Jango e depois para o golpe de 1964. Daí em diante, com as reformas da legislação, os Atos Institucionais – entre eles o AI-5, fechou-se o regime e o programa foi implantado à revelia da população – ou melhor, contra ela. Assim o outro projeto, trabalhista, que previa as reformas de base, a ampliação dos direitos, a constituição das indústrias de base e de um mercado interno que sustentasse o crescimento, foi sufocado pelo golpe, pelos tanques, exílios, prisões, tortura e mortes.
O final da década de 1970 viu o fracasso do “milagre”, que afundou o país numa crise econômica e política, causadas pelo súbito aumento dos preços do petróleo e dos juros internacionais, maturação dos investimentos e vencimentos dos empréstimos contraídos, entre outras coisas. O caminho imposto tinha sido desastroso.
Passamos os anos 1980 buscando saída para os dois maiores problemas da época: a inflação e a dívida externa. Neste caminho a sociedade se reorganizou e construiu sua nova Constituição. Já neste período, o debate entre os dois modelos surgiu novamente e, nos anos 1990, seriam representados – majoritariamente – por dois grandes partidos. De um lado o PSDB e seus aliados e, de outro, o PT com os seus. Não são, como muitos já pensaram, partidos irmãos ou que disputam o poder pelo poder. Representam duas visões de mundo, bem diferentes.
O nível de desemprego, entre outros dados, mostra a dicotomia entre as duas políticas, na prática:
Tivemos durante todo os anos 1990 aumento do desemprego e todas as suas consequências diretas: redução do poder de barganha e reivindicação dos trabalhadores, redução dos salários médios, piora na qualidade de vida. A tendência se inverte claramente a partir de 2004, sob o novo modelo.
A direita no Brasil, até recentemente, se apresentava como de centro, ou social democrata, mas na verdade é liberal na economia e conservadora na política. Nunca aceitou direitos mínimos praticados no mundo ocidental. Apoiou Collor na eleição e/ou no parlamento. Privatizou três quartos do patrimônio nacional durante o governo Fernando Henrique. Reduziu direitos ou evitou que eles aumentassem, desorganizou a administração pública e as finanças nacionais, a ponto do país, falido em 2002, escolher um outro projeto, até então inédito.
Para ser eleito como representante deste projeto, os setores à esquerda tiveram que ampliar sua penetração em camadas médias e rebaixaram seu programa. Assim tem se limitado, praticamente, a organizar políticas públicas, estas sim, sociais democratas, no máximo distribuidora de renda e direitos, sem questionar o sistema. Nem ao menos o sistema eleitoral – fábrica de corruptos e de corruptores que compram bilhete premiado ao financiar todos os partidos e projetos, contando que vão continuar sendo beneficiados no futuro. Nem um programa de pequenas reformas os setores mais conservadores toleram.
Por dever de ofício, como sociólogo e professor de políticas públicas, pratico o hobby de colecionar séries históricas dos indicadores econômicos e sociais. E não há nenhum deles que não tenha melhorado significativamente nos últimos governos. Na economia, os dados de emprego, salário mínimo e reservas internacionais são suficientes para mostrar a evolução econômica no período.
O valor real do salário mínimo também mostra a diferença entre os modelos. Até 2003, o teto, em valores de 2016, era de R$ 500 reais. Subiu de forma consistente durante entre 2004 e 2016, chegando aos R$ 880, o que era dito ser impossível.
Nas áreas sociais os números são ainda mais impressionantes, mas fiquemos com a educação, dado nosso espaço. O número de mestres e doutores formados por ano saltou de 31 mil em 2002 para 67 mil em 2014.
Em números redondos, entre 2003 e 2013 o número de professores com mestrado subiu de 89 mil para 146 mil, enquanto que o de professores com doutorado subiu de 54 mil para 121 mil, um aumento de 122%. O mesmo crescimento se verifica no número de alunos nas instituições públicas. Entre graduação e pós o número de alunos matriculados subiu de 563.351 para 1.221.598, ou seja, 117%.
Existe uma infinidade de outros dados e programas positivos, como o Fies, o Pronatec, o Prouni e o Ciência sem Fronteiras. O total de alunos matriculados em algum curso superior dobrou, subindo de 3,9 milhões para 7,8 milhões entre 2003 e 2013, a maior parte com bolsas financiadas pelo governo. Houve também um aumento significativo do orçamento da educação (e também de saúde) nos municípios neste período, favorecidos também pelo aumento PIB e controle da inflação por vários anos, na média sempre mais favoráveis que nos períodos anteriores. Basta ver os números. São cristalinos.
Nossas reservas internacionais saíram de R$ 35 bilhões em 2002 e chegaram a R$ 376 bilhões em 2013, superando nossa dívida externa desde 2008, situação inédita na história.
Esta estabilidade, o aumento do salário mínimo, as políticas sociais como bolsa família e outras políticas anticíclicas fizeram com que a maior crise do capitalismo desde os anos 1930 fosse minimizada ou postergada no país, enquanto crises anteriores, menores, destruíram nossa economia. Os últimos governos enfrentaram o colapso da política especulativa do capitalismo mundial, iniciada em 2008 e que repercute até hoje. Apesar da crise, houve redução significativa da pobreza extrema (de 15% para 5%) e da pobreza (de 36% para 16%) da população, entre 2002 e 2012. O índice de Gini, que mostra a desigualdade de renda, voltou ao padrão dos anos 1960, depois de aumentar sem trégua até os anos 2000. Embora continue vergonhoso, sua tendência é de queda, diferente de antes.
Claro que muito problemas persistiram, a dívida social do Brasil era – e ainda é – enorme e muito há que se fazer. Mas é evidente também que os motivos que levam à derrubada do governo não são os seus erros – muitos e graves, aliás – mas os acertos, isto é, as políticas a favor da maioria da população. E, mesmo havendo muitos erros, nenhum deles nem seu conjunto justifica o que se pretende. Principalmente se olharmos para seus articuladores: todos estiveram ou estão no governo. Todos cometeram e cometem os mesmos ou mais graves erros em seus mandatos. Muito eram partícipes do governo que agora acusam. Outros governam há décadas estados como São Paulo, Minas Gerais ou governaram o próprio país e, apesar de todas as denúncias, elas parecem não existir. Não se trata obviamente de combater a corrupção, mas de substituir um conjunto de políticas por outro, muito diferente.
As políticas públicas construídas entre 2003 e 2014, em síntese distribuidoras de renda – seja diretamente pelo aumento dos salários e pelos programas sociais, ou indiretamente, pelo aumento dos serviços públicos – não interessa a uma parte significativa da elite conservadora, que sempre se beneficiou das crises e de seus efeitos ou remédios tradicionais, como os altos juros, aumento do desemprego e da redução do poder de compra dos assalariados. E esta elite não assimilou a derrota de 2014.
Questionou as urnas eletrônicas, o voto dos nordestinos e dos pobres, quis impedir a diplomação da eleita. Com poderosos aliados no mercado, na imprensa, nos poderes legislativo e judiciário, jogaram o país na maior crise política – que se derivou na maior crise econômica da história. Com a paralisia da economia e a redução dos impostos arrecadados, o sistema entrou em colapso, a partir de 2014.
Entretanto, não se poderia derrubar um governo defendendo a concentração de renda, a redução de direitos… era necessária uma bandeira. E, então, descobriram que existe corrupção nas eleições, nas estatais, nos governos. Tudo teria começado em 2003 e por isso estaríamos em crise. Fenomenal! Mas o governo não está sendo derrubado por causa da corrupção. As acusações são de crime fiscal – não cometidos. E, se assim considerados, também o foram pelo vice-presidente, articulador e beneficiário da situação. Não há coerência nem justiça alguma – e isso vai custar caro à nossa ainda frágil democracia.
Diante da radicalização, o governo Dilma capitulou ainda no final de 2014. Passada a eleição, achou que poderia acalmar as hienas com políticas que lhes agradavam, como o aumento da taxa de juros e outras medidas recessivas. Assim, na prática seu segundo mandato nunca existiu.
A oposição conseguiu criar um clima de ódio nunca visto. As feras foram soltas: virou moda ser de direita, ser contra políticas públicas, ser contra gays e nordestinos, defender torturadores. A caixa de pandora foi aberta, a guilhotina afiada. Não havia mais possibilidade de acordo.
Não bastasse o ódio de classe, a autonomia com que as investigações corriam logo tornaria impossível ocultar os reais interesses dos que sempre governaram o país, senão por 500, pelo menos por mais de 100 anos, e que nos legaram o país que vivíamos até 2002 – ou ninguém se lembra mais? Era um paraíso? Era preciso parar tudo.
Qualquer que seja o desfecho nos próximos dias, amigos que se opuseram nos últimos meses terão que se unir novamente e enfrentar os próximos golpes: o congelamento – redução na prática – dos gastos em saúde, educação e serviços públicos em geral, a tal escola sem partido, o dogmatismo religioso, entre outras velharias medievais.
Em plena crise econômica prepara-se um novo ciclo de privatizações, a preço de banana e financiado pelo próprio governo, como antes. A área saneamento deve ser uma das primeiras. A Petrobrás e nosso petróleo também: sua privatização vai impedir os aumentos de gastos com saúde e educação previstos no modelo atual, além de comprometer nossa soberania. É um misto de questões que vêm dos anos 1950, 60 e 90, agora recolocadas.
Com o vertiginoso aumento do desemprego prepara-se um novo ciclo de arrocho salarial, redução dos direitos trabalhistas e previdenciários, terceirização sem limites. A repressão às liberdades individuais, como já estamos vendo nas manifestações estudantis e nos estádios, em breve serão comuns nas greves e movimentos sociais, como sempre foram até 2002.
Olho para trás, para os anos 1980. Imagino o que seria o Brasil sem a luta dos trabalhadores, sem as greves, sem a ação dos partidos progressistas na Constituinte, sem o combate ao neoliberalismo dos anos noventa. O que seria do Brasil sem este lado que hoje é apontado como culpado por tudo? Tenho certeza que estaríamos numa situação muito pior que hoje.
Olhando para os dados acima, dois anos atrás, me orgulhava de ter feito parte dos que lutaram para construir um novo país, mais justo e solidário para minhas filhas. Hoje, Dia dos Pais, quando escrevo, tenho certeza de que elas terão de continuar meu caminho, com lágrimas, força e perseverança, enfrentando os que hoje riem.
Volto a pensar em Dante, às portas do inferno:
“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança”.
Mas, como cantou Cazuza, o tempo não para! Pelo que fizeram e pretendem fazer, construirão sua própria derrota. Estou pronto para os próximos trinta anos!
Referências Básicas:
BRASIL – INEP – www.inep.gov.br
BRASIL – IPEA – www.ipeadata.gov.br
Fundação Getúlio Vargas – www.antigofgvdados.fgv.br/
Observatório do PNE – www.observatoriodopne.org.br/
Primeiramente, FORA TEMER!!!!!Na medida da razão dialética! Claro, didático, com dados e fontes confiáveis.....GOLPE BRANCO como a derrubada de Manuel Zelaia de Honduras, o golpe da Nicarágua, o do Paraguai, veio o do Brasil em 2016. Chaves quase tomou um em 2002.
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