Como se já não bastasse a avalanche de notícias preocupantes tanto no cenário nacional quanto no cenário internacional nesse início de ano, a Fundação Mozilla adicionou mais uma notícia que demanda nossa atenção: a saúde da Internet poderia estar melhor.
A Fundação Mozilla, para quem não conhece, é responsável pelo Firefox, um navegador “aberto” que antes do aparecimento do Google Chrome era a melhor alternativa ao Internet Explorer, da Microsoft. Na década de 90 Bill Gates não escondia seus planos de tornar a Internet cada vez mais proprietária, um “produto” da Microsoft, e a Fundação Mozilla foi peça fundamental em evitar que isso se tornasse realidade (dá calafrio só de pensar…).
Pois bem, a Fundação Mozilla decidiu criar uma pesquisa periódica para avaliar a “saúde” da Internet, ou seja, o quanto a Internet serve seus propósitos de conectar as pessoas do mundo todo, oferecendo oportunidades de crescimento a todos. A versão recém-publicada é um protótipo, ou seja, um teste inicial para avaliar os conceitos do que se tornará um esforço permanente e periódico.
A Internet, na visão da Fundação Mozilla, é um ecossistema, e para mensurar a saúde desse ecossistema cinco grandes aspectos foram avaliados, por meio de cinco grandes questões:
- Inovação aberta e disponível – O quanto a Internet é aberta?
- Inclusão Digital – Quem é bem-vindo online?
- Descentralização – Quem controla a Internet?
- Privacidade e Segurança –O quanto a Internet é segura?
- “Alfabetização” (grau de instrução) – Quem pode ser bem-sucedido online?
A pesquisa pode ser encontrada na íntegra aqui.
As respostas a cada questão trazem uma análise de onde estamos e para onde estamos indo em relação à Internet, e os autores oferecem ainda avaliações do que consideram “saudável” e “insalubre” na Internet. Vejamos alguns dos pontos levantados:
O quanto a Internet é aberta?
Tudo o que flui de bom na Internet, flui porque se trata de um ecossistema aberto, onde o acesso é livre a todos. Essa abertura esteve em cheque no início da década de 90, quando a Microsoft, depois de ter vencido a batalha contra o Navegador Netscape, passou a subverter o protocolo HTML de forma que páginas e sites feitos com sua versão dessa linguagem só fossem expostos corretamente no navegador Internet Explorer, da empresa. A comunidade reagiu a esse ataque, e desde o fim da década de 90 o Internet Explorer se transformou em um navegador secundário, de pouca relevância, caindo de uma fatia de mais de 70% de mercado em 2008, para ser ultrapassado pelo Google Chrome — um navegador totalmente comprometido com os padrões abertos — em maio de 2012, e hoje ocupando apenas a quinta posição no ranking dos navegadores.
Afastado o perigo da privatização dos navegadores, os protocolos e recursos da Internet passaram a ser cada vez mais abertos, dando oportunidade a todos os interessados de acessar informações e de colocar suas informações à disposição de todos os internautas.
Saudável – qualquer um pode criar um site sobre um assunto qualquer, tendo seus conteúdos protegidos pelo “Creative Commons”, um acordo de copyright atual que permite que trabalhos sejam citados e reutilizados desde que com atribuição. Esse ambiente aberto permite que bilhões de pessoas tenham acesso a informação que antes da Internet lhes seria inacessível.
Insalubre – essa “abertura” da Internet também propicia abusos, com a apropriação indébita de recursos ocorrendo corriqueiramente, sem que tenhamos uma solução para esse problema. Textos, músicas, filmes, programas de computador e tudo o mais que “cai na rede” é compartilhado sem a menor cerimônia, em detrimento de direitos autorais. O que se espera é que novos modelos de negócio surjam — como já vêm surgindo — para adaptar os direitos dos criadores à realidade do “tudo é de todos” que hoje rege os recursos da Internet. Incidentalmente, Kevin Kelly, no livro The Inevitable, que resenhei aqui no Confrariando, aponta para os serviços complementares como sendo um caminho para que os autores derivem ganhos de suas produções. Exemplo: um show de rock de sua banda preferida pode ser mixado de forma a soar com perfeição para o seu sistema de som em sua sala. O show genérico pode ser copiado, mas a experiência da acústica perfeita (e tem muita gente que valoriza a qualidade irretocável de som) só consegue quem fornecer os dados de seu ambiente e de seu equipamento, e, obviamente, mediante pagamento. Há vários outros exemplos de serviços complementares a produtos que certamente gerarão ganhos a quem os prestar.
Do outro lado dessa questão estão os patent trolls, que são empresas que compram patentes, não produzem absolutamente nada, e apenas extorquem dinheiro de inovadores que de alguma maneira infringem (ou supostamente infringem) essas patentes, tendo que pagar valores pesados pelas infrações. Esta estratégia criminosa (de fato, se não mediante a lei) impede o progresso da tecnologia.
Quem é bem-vindo online?
Apesar de haver incentivo a que todo cidadão planetário participe da Internet, mais de 50% da população ainda não tem acesso à rede. A diversidade — tão benévola ao desenvolvimento de todos nós — continua enfrentando barreiras de custos, conexões de baixa qualidade e censura.
Saudável – Hoje já temos mais de 3 bilhões de internautas, sendo que a maioria deles vêm de países em desenvolvimento, o que ajuda sobremaneira na diversidade que se busca. O smartphone contribui de forma contundente para levar o acesso a todos, o que ajuda cada vez mais nesse processo de inclusão.
Recursos gratuitos — em especial a Wikipedia — contribuem para a instrução dos internautas. A Wikipedia, aliás, já tem artigos disponíveis em 284 línguas, e tem adicionados entre 1500 e 2000 artigos diariamente. “Puxa, mas a Wikipedia não é confiável: é um recurso em que todos podem mexer, e portanto passível de erros”, dirão os mais céticos. Sim, é verdade, mas esses erros são cada vez mais raros graças a um mecanismo simples e efetivo. Uma versão aceita como correta de um artigo da Wikipedia pode, de fato ser vandalizada ou distorcida por um editor qualquer. Ocorre que essa vandalização ou essa distorção demandam tempo e esforço por quem as realiza. Sabendo disso, os mantenedores da Wikipedia criaram o mecanismo de rollback, ou seja, de retorno à última versão aceita como correta. Para executá-lo, basta que o autor da última versão aceita (ou um dos editores sênior da Wikipedia) aperte um botão. O trabalho de horas para desfigurar a página gera um aviso imediato ao autor anterior e aos editores sênior, que em questão de segundos podem resolver o assunto. É como se a tinta de um edifício permitisse que o pichador terminasse sua “obra”, só para vê-la, alguns segundos depois, ser absorvida pela parede, deixando no lugar a tinta original. Que pichador investiria tempo em pichar um prédio assim? Análises recentes mostram que esse mecanismo é bastante eficiente, e assim os bagunceiros vão perdendo o incentivo.
Insalubre – O acesso à Internet é mais fácil e barato em países ricos, o que dificulta a diversidade. Há, também, evidências em vários estudos de que os homens estão tendo acesso à internet com maior facilidade que as mulheres.
Outro ponto visto como insalubre é o cerceamento dos direitos de acesso à informação a que regimes totalitários costumam submeter seus cidadãos. Censura, pura e simples, e a China é um exemplo primaz desse tipo indesejado de comportamento. O chinês é o segundo idioma mais presente na Internet — os internautas que falam chinês perdem em quantidade apenas para os internautas que falam inglês —, mas apenas 2% do conteúdo da Web está em idioma chinês. Do outro lado desse espectro, temos o idioma inglês, utilizado em 52% dos websites, apesar de apenas 25% da população mundial falar inglês.
Quem controla a Internet?
Em teoria, a Internet é um ecossistema descentralizado, que não se submete a um controle único ou oligárquico. Essa descentralização é importante para fomentar a diversidade, e para oferecer oportunidades iguais a todos.
No entanto, essa descentralização se dissipa à medida que concentramos nossa atenção em um conjunto limitado de recursos disponíveis, como no caso das redes sociais.
Saudável – Há mais de um bilhão de sites disponíveis para consulta no mundo todo, mantidos por indivíduos e organizações, oferecendo os mais diversos pontos-de-vista. Quase um terço desses websites são desenvolvidos e mantidos com o WordPress (e o Confrariando se encontra nesse grupo), uma plataforma gratuita de construção de sites e gestão de conteúdos. No total, mais de 70% dos sites em operação são criados e mantidos com plataformas semelhantes.
A Neutralidade da Rede (Net Neutrality) é um acordo internacional que garante que todo o tráfego seja tratado da mesma forma, o que impede que tráfego considerado mais “valioso” seja cobrado mais caro. Seria o caso, por exemplo, dos filmes exibidos pelo YouTube: sem a Net Neutrality os provedores (leia-se: empresas telefônicas) cobrariam mais caro por este e por outros tipos de conteúdos, criando diferenciação de acesso por faixa econômica. A ausência desse tipo de discriminação é exemplo de descentralização de controle da Internet.
Insalubre – Um conjunto pequeno de empresas, entre elas o Google, o Facebook, a Amazon e a Apple, controla a maior parte da atenção dos usuários na Internet, direcionando para si própria e para seus próprios interesses essa atenção.
No caso dos smartphones, a situação é ainda pior: apenas duas empresas — Google e Apple — controlam praticamente 100% dos ambientes disponíveis e do mercado de aplicações.
O quanto a Internet é segura?
A internet — e aqui é fundamental destacar todos os dispositivos acoplados a ela — além de um gigantesco e conveniente repositório de informações, é também um gigantesco e inconveniente coletor de informações. Um coletor de informações a nosso respeito, diga-se de passagem. É, ainda, um meio pelo qual outros têm acesso às nossas vidas, às nossas ações e aos nossos ativos de forma simples e rápida.
Nesse contexto é natural que preocupações com segurança surjam e nos tirem um pouco da tranquilidade.
Saudável – Cada vez mais o internauta está ciente de que precisa ter sua segurança e sua privacidade preservadas online. Este internauta aprende sobre antivírus, phishing, bloqueadores de anúncio, e fica mais “esperto” com oferta e comportamentos que se mostrem estranhos.
A criptografia está em alta, e cada vez mais internautas procuram o cadeado no canto inferior do navegador (ou na barra de navegação) antes de realizarem transações comerciais. Ainda há muito o que crescer nesses quesitos, mas a tendência é de melhoria nos índices de ciência e preocupação.
Essas melhorias ocorrem, muitas vezes, como reação a problemas incorridos pela falta de preocupação com segurança, como no caso de perda de dados por conta de vírus. Ainda assim, isto é, ainda que sejam casos de “gato escaldado tem medo de água fria”, o fato é que a consci6encia está aumentando entre os internautas.
Insalubre – Os governos não estão se furtando em aprovar leis que permitam acesso a dados privados de seus cidadãos. Cada vez mais, câmeras têm sido instaladas em novos locais, em nome da segurança e, em vários casos, são usadas para coletar informações acerca de cidadãos que não cometeram crimes. Edward Snowden nos mostrou, em 2013, que o governo norte-americano tem acesso (indevido e ilegal) às comunicações privadas de boa parte de seus cidadãos. Em que pese os governos afirmarem que utilizam essas informações para manter a segurança da população, não há garantias de que isso seja verdade 100% do tempo (ou em momento algum, aliás), e em regimes totalitários há evidências de que essas brechas são usadas para perseguir “inimigos do regime”.
Quem pode ser bem-sucedido online
No quesito “alfabetização”, ou grau de instrução sobre a Internet, o que se busca é entender o quanto o internauta entende sobre o que de fato é, para que serve e como utilizar adequadamente os recursos da Internet.
A tecnologia hoje, por ser mais avançada, é de uso mais fácil por todos. Isso obviamente facilita o acesso e o uso, mas diferentemente do tempo em que essa tecnologia era complexa. Hoje em dia a compreensão dessa tecnologia já não é mais tão necessária. O problema que essa tendência cria é óbvio: analogamente ao analfabetismo funcional, estamos criando internautas analfabetos funcionais, isto é, analfabetos funcionais no que concerne ao uso e a compreensão dos recursos da Internet.
Saudável– Há uma tendência mundial de se trazer o ensino de uso da Internet para dentro da sala de aula, incorporando os recursos da Internet aos materiais didáticos disponíveis para o aluno. Na Europa, vários países estão indo além: incorporam programação de computadores nos currículos escolares.
Outro exemplo é o conjunto de iniciativas em vários países para a inclusão feminina no aprendizado de programação, removendo dessa atividade o estigma absurdo e chauvinista de ser “coisa de homem”.
Insalubre – Muita gente ainda não entende o que é a Internet, e muito menos sabe como funciona. Exemplo disso é que no Brasil 55% dos Internautas creem que a Internet e o Facebook sejam a mesma coisa (na Índia esse percentual é de 58%, na Indonésia é de 61% e na Nigéria é de 65%, enquanto nos EUA é de apenas 5%).
No mundo todo há uma enorme dificuldade por parte dos internautas de distinguir entre conteúdo patrocinado/promocional e notícias “de fato”. Mais ainda: não existe o hábito de se comprovar a veracidade ou falsidade das informações disponíveis online, e o internauta tende a aceitar aquilo que corrobora seu ponto-de-vista, rejeitando aquilo que é contrário às suas ideias.
O resultado é doloroso: falsas notícias grassam pela Internet, e colaboram para definir situações que transcendem a própria Internet, como no caso do BREXIT e da eleição de Donald Trump à presidência nos EUA. No caso britânico, notícias falsas sobre redução de empregos e altos gastos em função da presença estrangeira no país ajudaram os conservadores ingleses a convencer boa parte do público que o melhor para a GRã-Bretanha era sair da União Europeia. No caso americano, notícias falsas criaram a imagem de que Hillary Clinton era mais desonesta, mains inescrupulosa e mais nociva para o país do que Donald Trump, possibilitando a eleição do candidato Republicano à presidência.
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No geral esse protótipo da pesquisa estabelece que já caminhamos um pouco no sentido de tornar a Internet mais disponível, mais justa e mais segura para todos, mas ainda há um longo caminho a seguir. Temos muito a fazer:
- Manter a Internet aberta, disponível a todos;
- Facilitar e incentivar o acesso de todos à Internet, independente de nacionalidade, classe social, gênero, ideologia ou qualquer outra característica que nos diferencie;
- Evitar a centralização e facilitar cada vez mais a independência do pensamento de cada internauta;
- Melhorar as condições de segurança e privacidade, criando um ambiente em que o internauta se sinta seguro; aumentar a consciência de todos os internautas de que sua segurança e sua privacidade são fundamentais e devem ser defendidas e preservadas;
- Aumentar o conhecimento e a cultura de todos os internautas acerca do que e, do funcionamento, e dos propósitos da Internet.
E você? Como se encaixa nos itens avaliados? O que você crê que precise melhorar na Internet?
Conte-me nos comentários abaixo.
Excelente artigo. Velocidade do pensamento na era digital. Infelizmente muiyos que tem acesso nào sabem aproveitar e bucar conhecimento. Muitos se prendem a saber o outros fazem e não o que ou como eles poderiam melhorar a si mesmos. Dar estradas para quem não sabe para onde ir. Acaba semdo um transtorno, as vezes me sinto vitima de proagandas, piadas, assuntos que não me interessam. E se pedirmos por favor não me encaminhe tais assuntos, somos antipaticos. Usem a internet como se fosse uma gramde biblioteca, jornal, livro. O que me chamar atenção certamente vou acessar e ler. Pense como se estivesse no mundo real. Se preocupe com sua reputação.
Obrigado, Ivonete! De fato, a Internet é uma excelente ferramenta, que poucos sabem como usar adequadamente. E o pior: a Internet traz aquilo que mais precisamos nesse terceiro milênio, e poucos de nós aproveitamos: conhecimento, informação, formação. Não: preferimos fuxicar no Facebook e ver vídeos de gato e de gente levando tombo no YouTube. É como se ganhássemos uma Ferrari de presente e a utilizássemos como poleiro para criar galinhas. Prova de que não sabemos o que é e para que serve a Internet é o fato de que 55% de nós, brasileiros, pensamos que a Internet é o Facebook. Esse povo precisa se informar. Mas podemos ajudar, não é verdade? Podemos levar essas informações a quem precisa. Até a próxima!