A História nos mostra que os impérios, por mais poderosos e imponentes que se tornem, têm data de validade. Um a um se ergueram, se expandiram, mudaram culturas e economias, causaram sofrimento para os conquistados, proporcionaram riquezas para os conquistadores mas, em algum momento, sucumbiram ao próprio peso. O império persa de Ciro e Xerxes, o Império Macedônico de Alexandre, Roma, Genghis Khan e seu exército Mongol, o Império Britânico onde o Sol nunca se punha. Um a um eles vieram e se foram.
E, segundo o novo livro de Malcolm Nance, a bola da vez é o Império Americano.
O livro é The Plot to Destroy Democracy: How Putin and His Spies Are Undermining America and Dismantling the West, publicado no fim de junho nos EUA e atualmente na lista dos bestsellers do New York Times.
Nance discorre sobre o assunto munido de credenciais sólidas. Foi oficial da marinha americana, onde teve longa carreira em operações de inteligência, contraterrorismo, criptografia e espionagem. Conhece os meandros das agências de inteligência dos EUA e fala com a desenvoltura de quem as conhece intimamente. Já o vi em entrevistas e em painéis de discussão, e mesmo que ele não mencione explicitamente, fica bastante claro seu papel na espionagem americana nos anos pós-Guerra Fria, especificamente no Oriente Médio e no Afeganistão.
Em seu livro, ele fala abertamente — apresentando dados e datas, muitos dos quais podem ser comprovados — sobre o plano de Vladimir Putin para “destruir a democracia”. Como? Elegendo Donald Trump.
O livro descreve o envolvimento russo com o autoproclamado bilionário americano desde a década de 1980. Após uma visita a Moscou, em 1987, Trump escreveu um artigo pago de página inteira publicado no New York Times, no Washington Post e no Boston Globe, em que condenava a política externa de Ronald Reagan e o relacionamento dos EUA com seus aliados (aliados, diga-se de passagem, contra a União Soviética). A partir daí, ainda que de maneira menos histriônica do que um artigo de página inteira, foi possível perceber, em atos isolados, a proximidade de Trump com a Rússia.
Nance defende que Trump se envolveu com os interesses russos para defender os seus próprios interesses financeiros, e tem sido incentivado diretamente pelo Kremlin a se envolver mais diretamente na política dos EUA desde o início da década de 2010. Segundo o autor, Putin — ele mesmo um ex-espião que foi chefe da KGB antes de se lançar como político — nunca aceitou a derrota na Guerra Fria e a derrocada da União Soviética, ambos provocados, segundo o próprio Putin, pelos EUA.
O presidente russo teria traçado um plano para recobrar a hegemonia russa, e para tanto seria necessário reduzir a influência americana no cenário global, tanto política quanto economicamente. Nance não mede palavras quando afirma categoricamente que esse plano consiste na destruição do que ele chama de “a democracia americana”.
Putin teria percebido, logo no início da presente década, que — em nível global — os valores estavam se voltando para o conservadorismo, e decidiu por em ação um plano para capitalizar sobre esta tendência. Coincidentemente ou não, foi por essa época que Trump começou sua campanha para “demonstrar” que o então presidente Barack Obama era, na verdade um cidadão queniano e, portanto, sem direito a ocupar o posto de presidente dos EUA.
O histrionismo de Trump cresceu, e cresceram também as ações de hackers russos para obter informações sobre personagens proeminentes na política americana. Após 2012, ficaria claro que a postulante democrata à presidência seria a ex-senadora e ex-secretária de estado (e, obviamente, ex-primeira dama) Hillary Clinton, e o Kremlin concentrou nela as ações de coleta de informações. Clinton havia cometido o erro crasso de criar um servidor de e-mails privado e usá-lo para tratar de assuntos de estado, e a busca dessas mensagens passou a ser missão para os agentes a serviço de Putin. Nance afirma que os e-mails — em que pese o flagrante delito — não contêm informações sensíveis à segurança dos EUA, e não apontam para ações ilegais de Clinton. Mas a mídia se fartou na história, impulsionada pelos gritos de lock her up (trancafiem-na) de Trump e seus seguidores. Enquanto isso, notícias de que o gestor da campanha de Trump, Paul Manafort, o assessor de segurança, Michael Flynn, e até mesmo o genro do candidato, Jared Kushner, estavam em contato com os russos com o objetivo de colher informações acerca de Hillary Clinton, se perdiam em meio às notícias dos e-mails.
A estratégia de Putin, segundo Nance, deu mais do que certo. A mensagem era direcionada aos americanos mais retrógrados, que se sentiam ameaçados pelas mudanças aceleradas na presidência de Barack Obama: maior igualdade para minorias e para mulheres, ascensão de grupos sociais antes relegados a segundo plano. Os brancos descendentes de europeus se viram “esquecidos”, e Trump amplificou essa mensagem e essa sensação, colocando-se como “mais um” no coro dos que supostamente haviam sido deixados para trás. Essa parcela do eleitorado sonha com o tempo em que os EUA reinavam absolutos no ocidente: um tempo em que os empregos eram fartos e pagavam bem — independente da capacitação —, em que as mulheres, os negros e os latinos sabiam onde era o seu lugar, e onde os muçulmanos eram representados apenas em papéis secundários de filmes de Hollywood. O slogan “Make America Great Again” se alicerça sobre uma realidade que (ainda bem) não existe mais. Ah, e o outro slogan “America First” é uma reedição do mesmo bordão usado durante a Segunda Guerra por uma parcela da população que acreditava que os EUA não deveriam se meter em um conflito para salvar judeus, e que se opunha ferrenhamente a que o país recebesse refugiados judeus. Este sentimento de resistência à mudança, de “volta aos valores”, de “qualquer coisa é melhor do que está aí”, aliás, é o que impulsiona o candidato brasileiro Jair Bolsonaro ao topo das pesquisas.
O resultado, segundo Nance, é que Trump deu voz a racistas, fascistas e nazistas em todos os cantos do país, e ajudado pelas campanhas de desinformação — as famosas fake news — levadas a cabo por times de hackers russos, conseguiu mudar uma pequena e crucial parcela da população em alguns estados, o que lhe garantiu a presidência.
O intuito dos russos é claro: criar o caos, dividir a população, lançar dúvidas sobre a imprensa, e com tudo isso enfraquecer o poderio americano no cenário mundial. Trump, que não tem em mente o interesse de ninguém, a não ser o seu próprio, criou o equivalente contemporâneo da família Borgia, famosa no papado do século XV. Cerca-se de filhos e assessores de confiança (mesmo que de competência absolutamente questionável) para defender seus interesses. Não hesita, por exemplo, em fazer propaganda aberta de seu complexo turístico em Mar-a-Lago, na Flórida, e não dá a mínima para o gritante conflito de interesses que permeia essa atitude. Ah, e não vê nada de errado em seu conluio com os russos, mesmo que tenha ficado escancaradamente claro seu “rabo preso” no encontro que teve com Putin em Helsinque, em julho.
Ao contrário, afirma para seus eleitores que nada de errado está ocorrendo, e que a investigação de que é alvo não passa de uma “caça às bruxas”. Já a atitude de fidelidade canina de seus eleitores é explicada facilmente por Voltaire: “É difícil libertar os tolos das correntes que eles veneram.”
O livro de Nance é contundente, e em vários momentos depende da confiança que se deposita no autor. Em muitos momentos os dados apresentados por ele são comprovados pelo que a imprensa já publicou, mas em vários outros, ele faz afirmações com base em seu conhecimento das entranhas do governo americano, em especial de seu acesso às agências de inteligência. Ele tece um cenário bastante crível, mas ainda assim, por não alicerçar várias afirmações com evidências sólidas, merece uma dose saudável de ceticismo.
Até porque, por seu passado como oficial das forças armadas, ligado às agências de inteligência e ao contraterrorismo, é claro que em momento algum Nance questiona as motivações de seu país. É um agente americano, e como tal, não vai fundo como deveria na análise das motivações de Putin ou nas ações mais questionáveis dos EUA. E é aí que o livro perde a oportunidade de esclarecer um fator crucial para se entender a sanha russa para provocar a derrocada americana.
Quem já explorou esse assunto com bastante desenvoltura e com um manancial sólido de dados e fatos, foi Naomi Klein, ativista política americana. Em seu livro The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism, Klein detalha as ações dos EUA para com os soviéticos, seus propósitos e resultados, antes e depois da Guerra Fria. Após a Segunda Guerra Mundial, com a ameaça soviética batendo à porta da Europa, os EUA conduziram a reconstrução das nações europeias de maneira bastante generosa: forneceram o capital e barraram a entrada de empresas norte-americanas no processo, permitindo que as nações recriassem seus parques industriais para se reerguerem. Os EUA permitiram, também, a instauração de democracias sociais, em que o estado cria uma estrutura de proteção ao cidadão. A maioria das nações do oeste e norte europeu se reestruturou com essa base de apoio.
Corta para 1989. Após a queda do muro de Berlim, Mikhail Gorbachov — então premiê soviético — solicitou apoio dos americanos para reconstruir seu país nas bases em que a Europa havia sido reconstruída. Ocorre que, naquele momento, não havia outra nação que ameaçasse os EUA — já que a própria ameaça anterior estava em frangalhos — e o direcionamento do governo do então presidente George H. W. Bush (Bush pai) foi bem mais direto: abram seus mercados, vendam suas empresas estatais, virem-se. Em questão de meses o aparato estatal soviético — empresas gigantescas de gás, petróleo e mineração, sem falar no parque industrial — foram rifadas a preço de banana. O máximo que o governo conseguiu foi garantir que essa rifa só aceitasse compradores russos, o que criou a oligarquia que hoje de fato rege o país.
Ao invés do apoio norte-americano o que os russos viram foi a desintegração de sua nação. Fome e crime explodiram, revoltas de países anexados pipocaram por todo lado, a corrupção se instaurou e reina até hoje. Um caos, do qual apenas com o braço forte da autocracia de Putin a Rússia começa a sair. Enquanto isso, os EUA faturaram alto e foram largamente ignorados em suas ações no Oriente Médio (invasão do Iraque) e Afeganistão, receberam mais “aliados” (leia-se: clientes) na OTAN e fizeram rigorosamente o que quiseram no mundo por duas décadas.
Bacana, né? Você derrota seu inimigo e aproveita gostosamente enquanto o observa se arrastando na lama. Bacana para quem observa, claro, porque quem se arrasta na lama tende a não achar nada legal essa situação.
O que nos traz ao objetivo de Putin com sua estratégia de desintegração da “democracia americana”, no dizer de Nance. Putin sabe que os EUA não permitirão outro pensamento, outro modo de vida se espalhar pelo mundo enquanto tiverem poder para impor sua vontade. Qual a solução? Diminuir o poder dos EUA no cenário global, não se esquecendo, claro, que ao diminuir esse poder, “zero” é um número bacana para se ter como meta.
Infelizmente todo esse arrazoado passa ao largo do livro de Nance, e está muito mais longe ainda da cabeça dos americanos em geral. Para eles, independentemente dos resultados negativos das ações do país para os países em que eles agem e buscam “libertar”, está tudo certo. O México foi espoliado para permitir a expansão dos EUA? Tudo bem. A América Latina foi impedida de tomar suas próprias decisões, de cometer seus próprios erros? Sem problemas. Países islâmicos são tratados como aliados apenas enquanto economicamente viável para a “matriz”? Opa, como não? Impor um banho de sangue no Vietnã e depois deixar os cacos para que o próprio país catar? Tá na mão! Ignorar o banho de sangue no Timor porque era do interesse da aliada Indonésia? Sim, claro que sim. E por aí vai.
Em suma, em que pese Nance ter razão e contar uma história prá lá de plausível sobre o plano de Putin para destruir a hegemonia dos EUA, ele conta apenas o lado da história que pinta os EUA como guardiões da Democracia. E o fato é que a Democracia Americana é uma falácia tão absurda quanto a Pax Romana: funciona muito bem para quem está do lado de lá da cerca, porque para quem está do lado de cá, fica o equivalente do papel da vaca no bife a cavalo.
Claro, a proposta de Putin é substituir a tal Democracia Americana por um produto inferior: autocracia oligarca e corrupta que ele instaurou em seu país. Nesse ponto, Nance tem razão em denunciar o plano, uma vez que se está ruim, nada garante que não possa piorar muito. E pelo andar da carruagem, isto é, pela reação tanto da população quanto dos detentores (públicos e privados) do poder, os EUA começam a criar suas razões para apoiar Trump, e, por tabela, jogam a favor dos planos de Putin. São cegos justificando e normalizando cada barbaridade perpetrada por Trump, e é justamente essa cegueira que preocupa, uma vez que contribui para a derrocada sonhada pelo presidente russo.
Mas preocupa mesmo? Sim, preocupa. A queda de Roma permitiu que no Renascimento lançássemos as sementes do iluminismo e do nascimento de uma sociedade um “tiquinho” menos injusta. Pelo menos as minorias têm o direito de lutar por igualdade, o que anteriormente era impensável. Mas antes de chegarmos a esses pífios avanços, o que vimos foi a desintegração da sociedade, no lento processo de atravessar um lamaçal que chamado Idade Média, que nos consumiu um milênio. O caos gerado pela redução do poderio americano tende a ser equivalente.
E assim ficamos, entre a cruz (credo) da “liberdade” americana e a sanha totalitária de Putin, com Trump gostosamente colaborando para a queda de seu próprio império.
E nós no meio dessa coreografia insana.
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