Não lembro se já comentei aqui, mas sou avessa a filmes de terror ou coisa do gênero. Acho que eles interferem em nossa psique de forma bem mais perversa do que imaginamos (deixando, inclusive, sequelas). Mas, como um fidedigno exemplar da espécie humana, sou cheia de paradoxos e contradições: deixei-me seduzir pelo prazer do medo provocado pelo filme Quarto 1408 (de 2007, direção de Mikael Hafström, com John Cusack e Samuel L. Jackson).
Cusack personifica um escritor que deixa de se dedicar a dramas e passa a escrever sobre fenômenos paranormais, apesar de ser uma pessoa totalmente cética. Precisando terminar o último capítulo de um livro seu, o personagem insiste em se hospedar em um quarto de hotel que teria sido cenário de 56 mortes violentas. Cusack faz questão de comprovar que a origem das tragédias nada tem de sobrenatural. E, claro, o que o filme mostra é que o personagem estava errado!
O terror e suspense de Quarto 1408 não é escrachado: é sagaz, envolvente e perturbador. Assim como a mente humana, o tal quarto do hotel é desmontado, destruído e reconstruído das formas mais diversas no desenrolar da história. A total falta de domínio do personagem sobre o que acontece no quarto e sobre o que o quarto faz com ele é parecida com a total falta de domínio que temos sobre muitas de nossas emoções. Assim como em nossos piores pesadelos, Cusack não conseguia sair do quarto e o terror, vivido lá dentro, ia e vinha sem qualquer controle.
Durante uma das cenas mais fortes, Mel, que dormia tranquilamente em meu colo, pulou com aquela reatividade que só os felinos têm, indo em direção a seus irmãos que se concentravam em determinado ponto da casa. Isso não me mobilizou, pois estou acostumada à reação desses gatos quando algum inseto desavisado invade meu apartamento pelas janelas que ficam diuturnamente abertas.
Continuei com minha atenção à pequena tela de meu Ipad, interessada na trama do filme. Ao mesmo tempo, com o canto de olho, eu acompanhava a insistência felina naquele ponto logo ao meu lado. Eles estavam focados, obstinados a alcançar a presa, invisível para mim, escondida por entre as almofadas encostadas à janela. Há quase sete anos, as visitas que recebemos, vindas das janelas, são abelhas, mariposas, pernilongos e, uma vez, uma barulhenta cigarra.
Entre a perturbação causada pelo filme e o incômodo causado pela agitação dos gatos, vi, de repente, com minha visão lateral, uma grande mancha marrom na parede e muitas patas felinas tentando atingi-la. Aquilo me tirou do transe do filme e, ao virar meu rosto, mergulhei em outro terror que há anos eu não vivia: a visita indesejável de uma barata cascuda. À primeira vista, pareceu-me ter uns 15 centímetros! Eu já não sabia mais distinguir o que era o terror do personagem naquele quarto de hotel e o que era o meu terror em minha sala-de-estar.
Não! Eu não acreditava que teria que enfrentar uma situação tão bizarra àquela hora: ter que matar uma barata?? Era só o que me faltava. Primeiro porque, assim como 90% da humanidade, tenho grande aversão por essa criatura. Depois, eu sou do tipo que evita matar qualquer bicho: até as baratas! Há cerca de um mês, tive que acudir duas garotinhas que brincavam no pátio do condomínio em que minha mãe mora. Era noite e elas gritavam desesperadas com a presença de uma barata no jardim. Eu achei um absurdo ter que matar uma barata que usava de seu direito de passear em pleno céu aberto. Então, disfarçadamente, eu assustei a barata, com minha sombra, até o bueiro. Acho que fui mal interpretada pela natureza: o fato de eu não querer matar baratas não significa que eu queira intimidade com elas! Invadir meu território é demais! Dentro da minha casa? Aí não, né?
Eu me armei de havaiana e fui afastando almofada por almofada, até que a cascuda saiu correndo, seguida por cinco gatos que viam, na situação, motivo para muita diversão! Enquanto isso, eu tentava me convencer de que tinha que incorporar meu próprio príncipe, matador de dragões: só ele para me salvar daquela situação.
Enquanto a barata tentava se safar de cinco criaturas atarantadas, eu ia afastando móveis e objetos de decoração, desmontando os cômodos do meu apartamento. Foram umas três tentativas que fiz para atingi-la com meu chinelo que eu apertava em minha mão tensa. Não sei se a origem de meus fracassos consecutivos estava na falta de destreza ou se foi a rejeição inconsciente de ter que ouvir o barulho daquela casca escura sendo amassada entre chão e borracha.
De qualquer forma, eu tinha que ser rápida, pois a cascuda ainda não tinha se tocado de que poderia voar (talvez não o fizesse porque era gorda demais – irch!). Finalmente, eu me convenci de que era ela ou eu. Então, em meio a xingos e gemidos de aflição, consegui acertá-la em cheio! Não! O terror ainda não tinha acabado. Faltava uma prova ainda pior: ter que limpar os restos gosmentos da criatura nojenta…
É incrível como situações tão banais como essa podem nos atingir os ânimos! De onde vem tamanha aflição? Por que demonstramos reações tão diferentes conforme o contexto e o ambiente? Ao ar livre, não vejo problema em me desviar das baratas, mas, encontrá-las na privacidade de meu lar? Que importância é esta que dou a um inseto tão insignificante? Haveria uma espécie de inconsciente coletivo que nos leva ao pânico de baratas? (Meu Confrade Ruy me lembrou do arquetípico na interpretação Jungiana que explicaria o medo e asco das mulheres em relação a esses insetos).
De repente, meu pequeno apartamento tornou-se o quarto 1408 do filme a que eu estava assistindo. A barata, a corporificação de algum fantasma de meu inconsciente. Talvez, quem sabe, a cascuda não é, na verdade, a personificação de medos e contrariedades conscientes e inconscientes meus e medos e contrariedades conscientes e inconscientes coletivos, não é mesmo? Medo da sujeira que o inseto carrega em suas patas (sujeira pode levar a doenças, que levam à morte); medo do que é imprevisível (A barata poderia voar pra cima de mim a qualquer momento); Medo de me expor (como eu me sinto exposta quando enfrento uma barata cascuda!); contrariedade em ter que tirar tudo do caminho para flagrar a nojenta (como me incomoda desconstruir o meu arredor).
Pode até parecer exagero, mas não consegui evitar a comparação que fiz entre o personagem de Cusack com as assombrações do quarto 1408 e eu com a cascuda em meu apartamento.
Olá, Carla! Nem sei se você vai ver essa mensagem, já faz 1 ano e meio que você publicou esse texto... Mas, acabei de falar sobre esse filme com uma colega e resolvi pesquisar a respeito, e encontrei seu relato. Como você escreve bem! Me divertiu e prendeu do início ao fim! Adorei o seu português, a forma como o usou para se comunicar. Mas além disso, a interessantíssima análise da mente humana, comparando dois objetos aparentemente muito distintos! Genial, obrigado pelo texto!
Alôu, Filipe! Você não imagina a minha alegria ao ler seu comentário! A partir do momento em que um texto é divulgado, ele deixa de nos pertencer. Ou seja, já não temos qualquer poder sobre ele. Todas as interpretações são livres e adotadas de forma totalmente imprevisível. Quando notei que você captou toda a aura que tentei imprimir às minhas palavras, senti uma realização indescritível. Agradeço por sua leitura!!!!
Olá Carla! Estava pesquisando sobre Simon B. Cohen e acabei caindo na sua página. Que bom que eu encontrei aqui mais suporte para o que eu precisava .
Incrível essa sua análise me sentir em um episódio de American Horror Story, vc pinta com as palavras!
Texto nojento! Usou o filme de pretexto para se vangloriar de ter matado uma barata, sendo que quem entrou aqui queria saber sobre o filme e não sobre insetos. Fora os erros grotescos sobre o enredo do 1408 (56 morte violentas? O gerente geral do hotel deixou bem claro que foram 22 mortes naturais!) mas enfim, perdi alguns minutos preciosos que nunca voltarão atrás