No ano passado, quando estava em Franca, minha cidade natal, tive um diálogo muito bom com meu pai, durante uma feira literária organizada pelo SESI de lá. Estávamos escolhendo, ele e eu, ao menos um livro para levar para cada um, outro para minha mãe, mais outro para meu filho. Lá pelas tantas, tomo a esmo um romance de Alexandre Dumas que nem sabia existir, O Capitão Panfírio (SESI-SP Editora, 2014).
Lendo rapidamente o conteúdo da contracapa e do prefácio elaborado pelo editor, tomo nota das seguintes informações: Alexandre Dumas pai, ainda jovem, escreve esse romance, misto de fábula e romance de aventura na mesma época em que iniciava sua carreira de dramaturgo, durante a França de Rei Luís Felipe de Órleans. O enredo, provavelmente elaborado por um dos membros de seu estúdio, é estruturado em duas linhas narrativas: convivas de um banquete estão em torno de um manuscrito do século XVII, um registro das aventuras do Capitão Panfírio, pirata francês baseado no porto de Marselha que se aventura tanto pelas costas da África como pelos territórios canadenses. Um anti-herói picaresco que age com esperteza a situações hilárias, na mesma linha de um Lazarillo de Tormes ou ainda de um Leonardo Pataca em Memórias de um Sargento de Milícias.
Estou lendo a obra, que não faz jus necessariamente a toda essa descrição, pois o editor informa que, para viabilizar a publicação do referido romance, retira todos os trechos relacionados aos convivas do banquete de artistas que leem o relato do pirata. Uma pena, pois o livro apresenta os personagens com histórias ligadas a animais (de estimação ou não) que estão tanto presentes na vida dos artistas (tartarugas salvas de virar ensopado, macacos resgatados de circos e assim por diante) como do próprio capitão (macacos, papagaios e presas de animais sendo comercializados). Surpreso e sentindo-me enganado, mesmo assim escolho um exemplar, para lê-lo e confirmar suspeitas (sobre o enredo, sobre a edição). No fundo, o livro, já lido, é uma semifábula infantil, em sua época, para criticar os dilemas da sociedade baseada no lucro, além de uma crítica contundente ao trabalho escravo durante o século XIX.
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Comento com meu pai meu interesse pelo objeto que essa obra virou naquela edição, bem como o imbróglio que o editor brasileiro teve em mãos para viabilizar a publicação da obra; o público-leitor infantojuvenil atual, mais interessado na digitalidade, em likes e nos youtubers, os profetas da última hora; os custos de publicação de obras impressas (em relação às obras digitais, que por sinal encarecem); a escolha de se retirar trechos da obra, sob o pretexto de “facilitar o acesso ao enredo principal”, como se o fato de narrar histórias já não fosse por si mesmo uma ficção.
A descrição do pirata pelo editor no prefácio dizia:
“Às vezes, buscando minimamente sobreviver, pode se fingir de humilde e submisso ou, em busca de um bom negócio, pode se valer de sedução e civilidade. Mas, em boa parte das vezes, sua arrogância não tem limite e seu argumento nada sutil é um canhão instalado na proa do navio. Para ele, um pirata, os mares não têm segredos; partindo de Marselha, no sul da França, logo estará nas costas africanas negociando marfim e até mesmo escravos; dali para a costa do Canadá para se aproveitar de colonos e índios, é só um pulo. O ritmo das aventuras aqui narradas é acelerado, divertido e instigante, com as voltas e reviravoltas típicas do romance do século XIX. E, apesar de seu caráter amoral e cruel, o capitão Panfílio é um personagem fascinante, que convida o leitor a embarcar em suas aventuras”.
“Como acontece com o Lula, não?”, atira de supetão meu pai, ao ouvir a minha leitura. “Um pirata, contra as regras dos políticos e do mercado”.
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Fantástico. Uma tentativa de criar um modo de interpretar todos os acontecimentos surpreendentes em torno do Brasil nos últimos anos poderia ser, sim, contar tudo em forma de uma fábula, ou ainda, nesse caso, de um romance capa-e-espada. Lula, romantizado como um pirata esperto e inescrupuloso, que, corajoso como um D’Artagnan amoral, que age de maneira destemida e impune para suas crenças e propósitos. Realiza os acordos que lhe são vantajosos, não respeita as regras do jogo vigente. Ao mesmo tempo, suas ações também se fazem sentir pelos seus comandados, que são beneficiados em uma escala menor.
Se tomarmos as histórias de piratas como a variação da estrutura storytelling da “jornada do herói”, os navios seriam os países; o povo, sua tripulação; os políticos, seus oficiais; o presidente, o capitão. Todos seguiriam os códigos de conduta do período, que seriam as leis de corso, isto é, do estrito regulamento marítimo dos navios corsários que navegavam sob bandeira de uma nação. Nesses casos, as conquistas e os butins deveriam ser compartilhados entre os membros do navio, com proporções diferentes segundo a hierarquia regente, e o governo a que servem. Saque e carnificina regulamentados em níveis aceitáveis entre os países, como já ocorre com o cenário econômico atual, dadas as devidas proporções.
Já um pirata é diferente: não segue regras exteriores. Cria as suas próprias. Antes disso, o capitão de um navio pirata deve ajudar a manter o próprio navio em funcionamento e em condições para navegar, a tripulação feliz e bem alimentada, os oficiais motivados e premiados, os canhões carregados, os sabres de abordagem afiados e a postos. Ou seja, não responde a nada a não ser aos seus próprios arranjos internos e à garantia de sua própria integridade e sobrevivência. Para o pirata, todo o navio ou ser vivo ou terra, seja de que bandeira for, é uma presa em potencial. Senão, corre o risco de ser deposto e executado sumariamente pelos seus. De fato, um capitão, sua tripulação e seu navio estão atados em um espaço e circunstâncias de forma excepcional. Em um contexto assim, como nos romances e filmes, há motins, capitães são depostos, arranjos são desfeitos, novos acordos são realizados, barcos (e, não raro, tripulação) são aprisionados e vendidos.
Realmente seria um código ético que não aprovo, mas admitamos ser essa uma maneira de sobrevivência bem eficiente, embora não sem percalços. Bem típico do Brasil atual, em que acompanhamos com ávido interesse os acontecimentos da esfera política e econômica nacional e mundial como quem segue os capítulos de uma novela ou folhetim, com mais surpresa até do que a própria ficção.
Então Lula seria um Jack Sparrow operário? Segundo alguns, o pirata Lula e seus aliados se excederam: transgrediram as regras sagradas da pirataria reinante dos corsários à serviço (de países, de empresas).
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Repito a pergunta: o que é ficção nesse caso?
Como o personagem de Dumas, agora aprisionado em Curitiba na cela da Superintendência da Polícia Federal, Lula personaliza a imagem de um louco transgressor, ladrão, falsário, terrorista, ameaça ao nosso modo de vida e, aliás, a qualquer vida. Como se, na hipótese de ser solto, ou mesmo transitando mesmo que acompanhado por carcereiros, ele pudesse realmente subverter rapidamente o cenário atual em que vivemos, para o melhor e para o pior. Assim, uma outra narrativa se forma em torno do político operário, que é ser considerado um homem que, por vários motivos, conseguiu transcender à sua própria condição. Como na mitologia grega, um Prometeu acorrentado que, condenado por ter possibilitado à população brasileira visualizar com um clarão a sua condição de miséria, no sentido mais pleno (seus valores morais, sua limitação material, suas idiossincrasias), reside em sua cela nessa torre, sendo constantemente impedido de exercer seus direitos, mesmo aqueles em que há a restrição relegada à sua condição de preso. Ao mesmo tempo, não está circunscrito às mesmas condições da vida carcerária comum no Brasil – superlotação, criminalidade dentro dos presídios, falta de infraestrutura, doenças etc – o que somente ressalta a peculiaridade do caso.
Desta maneira, a paixão suscitada pela trajetória e pelo destino do ex-presidente continua sendo a novela com a maior audiência do momento. Sem dúvida, é melhor que acompanhar reality show de qualquer natureza. Para uns, amado, injustiçado e incompreendido, sem considerar a natureza das evidências (com seus benesses e reveses, por sinal) em torno de seu governo. Para outros, dissimulado e ainda impune de maneira definitiva, como se a passagem pelo sistema prisional proporcionado pela PF fosse um privilégio, o que atesta mais uma vez a condição de exceção em torno de sua prisão, dos processos pelos quais é julgado.
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Em outras palavras, um Napoleão em Elba. Figura também amada e odiada a seu tempo. Seria essa outra maneira de inscrever Lula na história: compará-lo a líderes que passaram por situações análogas. O próprio Dumas trata deste radicalismo em torno de uma figura emblemática em outras obras. A trama do romance O Conde de Monte Cristo gira em torno da noção de justiça e vingança, sobre a figura de Napoleão e, mais especificamente, dos efeitos da grande História sobre o homem comum, como ocorre com Edmond Dantes. Ali, coexiste a saga dos prisioneiros: a figura histórica que Bonaparte representou a seu tempo, de um lado; de outro, o protagonista Dantes representa as pessoas comuns, com pouquíssimas possibilidades de encaminhamento: a morte em vida; um renascimento social por via da religião ou da vingança ou do enriquecimento (“Seja empreendedor!”); o aprofundamento na criminalidade e na marginalidade. Ambas tecem verniz de aventura heroica e demonstração de estoicismo pelos prisioneiros.
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Segundo essa lógica, martírio e abuso são fetiches. Assim como o preso é alçado à condição de mártir, a figura do déspota também é incensada. Estamos às voltas com defensores da monarquia e de regimes autocráticos, como uma solução definitiva – lembrem-se sempre do peso histórico que essa expressão possui. Entender o comportamento social de eras anteriores – a vida de Maria Antonieta, as Guerra Mundiais, a trajetória de Hitler e dos nazistas, a vida dos soviéticos na era de Stálin, a vida dos imperadores chineses e romanos, dos faraós, dos mongóis – tornou-se uma obsessão. O biografismo nostálgico é uma tendência de consumo altamente monetizável, explorada o máximo possível pelas grandes empresas de tecnologia de informação, sedentas de metadados de usuários e geração de conteúdo. A inspiração da figura heroica nunca foi tão lucrativa.
Outro desdobramento dessa analogia seria a vida no trabalho. Empresas e grandes corporações maquiam as relações abusivas com ações de endosso dos colaboradores às suas práticas por meio de cursos, campanhas para dar crédito às suas regras, políticas de conduta e acordos – fluídos, diga-se – em nada se diferindo do funcionamento de uma corte do séc. XV ou XVI. A regra imposta ao trabalhador comum não se aplica a um executivo de escalão, alçado à figura de nobre. Exemplo cristalizado disso foi a prisão – outra? – arbitrária dos funcionários e engenheiros da mineradora Vale do Rio Doce, responsáveis pela gestão da barragem de dejetos em Brumadinho, no lugar da presidência, do conselho de investidores e dos diretores executivos. Foram estes – e não somente aqueles – que tomaram a decisão de negligenciar os riscos ambientais e atentaram contra a vida de seus próprios funcionários, de moradores e de turistas. Mas o presidente eleito deste país também preferiu não se arriscar e sobrevoou com o CEO dessa empresa a tragédia, relegando aos servidores o ônus da responsabilidade. Segundo o ministro da Casa Civil deste mesmo governo: “A prisão desse executivo não seria de interesse para a nação”.
O presidente entrou empunhando uma bandeira de combate à corrupção, para extirpar dos mares da política nacional aqueles que não obedecem a ética dos mares e de nossas plagas. Contudo, ele já escorregou: nem bem terminado o primeiro mês de governo, este mesmo presidente eleito e sua família estão envolvidos em suspeitas reais de enriquecimento ilícito, tem relação comprovada com milícias criminosas, não consegue demonstrar a capacidade necessária a um líder político em dialogar minimamente com quem quer que seja, ou mesmo para defender de maneira autônoma seus próprios projetos e planos de governo. Seus discursos não superam a lógica para além de sua capacidade de postar mensagens de intolerância e de preconceito nas redes sociais. Não entende das próprias regras e valores que prega. Um presidente deveria poder falar adequadamente sobre a política econômica, o que Lula fez realmente à sua época. Ele assumia seu discurso. Chamou a sociedade civil e representantes do mercado nacional e internacional no início de seu governo para acalmar ânimos. Projetou seu ideal de governo a partir do combate à fome e à miséria, e o fez com custos e assumindo riscos, concorde você ou não. Ainda estamos vivendo os efeitos dessas escolhas. E escolhas são renúncias.
Por outro lado, o atual presidente eleito foi orientado a não mais se pronunciar sobre a economia de seu país, para não estremecer as relações entre poder e mercado. Por que um líder de uma nação tem de ser desautorizado pelo seu próprio governo para falar de seus projetos de governo? Percebe-se que estamos enredados, aprisionados mesmo em um barco, com um flibusteiro, da mesma natureza que ele mesmo diz combater, no timão. Falemos em alto e bom som: Bolsonaro foi escolhido para ser o Capitão, mas não consegue ser mais que um capataz. E, novamente, vem à tona os rumores de um novo motim na política, agora seria para alçar seu imediato, o vice-presidente general “moderado” Mourão ao posto de comando.
Isso aqui é só ficção. Não deveríamos confundir resiliência com conformismo ou indiferença. No dia a dia, nos acostumamos ao estado de exceção, ao absurdo das situações e à arbitrariedade. Nesse sentido, nós, nessa nau de Vera Cruz, temos de considerar o que está sobre e sob o convés desse navio, o que está a bombordo e a estibordo.
Pois o barco faz água, literalmente.
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