Manhã de sábado no parque principal da cidade. Céu azul; frio brasileiro; balões coloridos; algodão doce; crianças, muitas; gritos, todos. O livro debaixo do braço e a certeza de que conseguir um lugar tranquilo em meio ao verde viraram pó, logo que presenciou a cena insustentável de um garoto se debatendo no chão, suplicando por sorvete, que era, conscientemente, ignorado pelos pais. Respirou fundo, como quem tem vontade de cuspir fogo, mas engole. Suspirou desanimada, precisava muito de silêncio e verde. Decidiu andar o parque todo até achar um canto qualquer onde pudesse recompor suas energias por meio de muito ar fresco silencioso.
Tinha sanduíche e frutas na bolsa. Na noite anterior havia sonhado que tomava suco de milho verde, da barraca amarela e barulhenta. Aliás, esse foi o motivo pelo qual escolheu justamente aquele parque, matar a vontade contida no sonho. Ficou cerca de trinta minutos na fila, com um funk tocado por um rádio pequeno, mas totalmente poderoso. Era tão alto, que mal podia ouvir os próprios pensamentos. Pensou em pedir para abaixarem o volume, afinal, tem muita espontaneidade no falar, bem como em se posicionar para o que for.
Acontece que era um tempo em que as coisas eram tão estranhas dentro dela, que quando dava conta já estava cega de raiva e já havia destruído tudo a sua volta com seu discurso eloquente, irônico e certeiro por crueldade. Quando voltava a si, sentia uma amargura e uma tristeza que apertavam o peito. E o arrependimento arrebatava seus sentidos todos. Até se desculpava, por assim dizer, mas palavra que se cospe, se perde. O fato é que, nos últimos tempos, foram tantos acontecimentos com finais emocionalmente desastrosos, que ela havia decidido simplesmente parar de cuspir fogo. Era uma raiva tamanha que sentia, mas tanta, que subia pelas entranhas, tomava seu ser e saia em forma de fogo, assim sem controle mesmo. A decisão, então, era não fazer nada até que descobrisse uma forma ecologicamente mais equilibrada de lidar com o que sentia.
Havia uma limpeza toda especial e única de muitos sentimentos e padrões que não mais serviam. Descoberto o motivo da raiva, podia controlar serenamente o descontrole. Foi então que decidiu passar um tempo controlando esse sentimento tão devastador e, ultimamente, tão constante. Feito isso, começou a lidar com algo ainda mais bizarro: sentia muita raiva por perceber o tamanho da raiva que sentia. Mesmo assim, decidiu nada fazer até que descobrisse uma forma nobre de lidar com aquilo.
Pegou, finalmente, seu tão sonhado suco de milho verde, vestiu um sorriso todo satisfeito por si só e entrou no parque em busca do local ideal para sua leitura e seu lanche. Andou muito até conseguir um local adequado. Estendeu a blusa de frio, presa à cintura, como quem estende uma toalha para piquenique. Ajeitou o sanduíche, as frutas, o suco. Fez os sapatos de travesseiro e começou, em paz, a leitura. Suspirou, esqueceu do fogo todo da raiva contida nela até então e sentiu uma tranquilidade toda silenciosa que gritava nela, por pura necessidade. Fechou os olhos, ouviu o vento balançar a copa das árvores, pássaros cantarem e o esboço gostoso de seu sorriso acalentador.
Suspirou. Ouviu um grito ao fundo e, de repente, a ingrata surpresa de uma bolada na cabeça. Abriu os olhos, atordoada, sem acreditar. Óculos quebrados, blusa molhada pelo suco tão desejado, que sequer havia provado. A bola maldita nas mãos trêmulas por um sentimento que sequer podia classificar. A raiva voltou com força total. Toda a raiva guardada até então para um movimento nobre de como lidar, era mesmo muita coisa guardada. A raiva virou uma avalanche enorme, foi crescendo dos pés à cabeça, sentiu seu rosto corar. Mordia os lábios como quem está prestes a entrar num campo de batalha. O que era mais temido aconteceu: era agora a ira em sua forma mais plena, pura, avassaladora. Sentiu o fogo todo do descontrole subir até chegar na boca, de forma totalmente imprudente, imoral e selvagem.
Esperou os garotos chegarem perto para buscar a bola. Estavam rindo de forma descompassada e frenética. A cena era patética de se ver e bem perigosa de sentir. Deixou a ira tomar conta como quis, ergueu a bola como quem ergue sua espada de Samurai. Deixou os olhos saltarem à vontade, escondidos pelas lentes quebradas e sujas dos óculos. Sentiu o gosto do fogo amortecer cada pedaço do céu da boca, transfigurou-se naquilo tudo guardado e podre, que há tanto faziam morada dentro dela e gritou no volume máximo da lucidez mais louca daquilo tudo:
– Foda-se! Tudo, todos! Foda-se!
Jogou a bola do outro lado do muro, no meio do trânsito. E gargalhou como a bruxa do oeste quando termina um feitiço cruel qualquer. Os garotos estavam estarrecidos de medo, pavor, assim como todos que passavam e presenciavam a cena. E ela ria uma sanidade toda arrebentada de tanta cautela sem nexo.
Ajeitou os óculos quebrados no rosto, amarrou de volta a blusa na cintura, colocou o livro debaixo do braço e se foi. Assim leve, louca, suja, feliz, limpa da podridão presa na garganta por tantos dias. Sabia que aquela não era a melhor maneira de cura, mas também havia descoberto, assim por equívoco, algo de muito valor para levar para a vida toda: ou você acolhe, reconhece, amortece e doma a raiva; ou ela te consome, ganha vida própria, se torna ira e explode quando bem quiser.
Tendo experimentado a segunda opção, por acidente, ficou mais fácil escolher viver com a primeira opção sempre disposta a acontecer. Sem remorsos, culpas ou afins.
Tentativa e erro são partes importantes do processo constante de evoluir. A vida não tem receita, meus caros.
É isso e é só.
Sabe, já ouvi muito sobre a raiva ser libertadora, o poder do Foda-se! Porém, a raiva realmente liberta ou aprisiona? Será que alguém imagina um mundo melhor com vários foda-se no dia? Li sobre a escolha de caminhos e da responsabilidades que devemos ter sobre nossos pensamentos, palavras e atitudes. Já li sobre a raiva e não como evitá-la, mas sobre o que fazer quando ela vem, avassaladora. Já li sobre a paz interior, transformadora na relação consigo e com o mundo. É, falta praticar e "experienciar", aliás, continuar a viver/seguir/caminhar, mas estando sempre atento para os excessos de desânimo, angústia, pessimismo e raiva! Obrigado!
Reflexões grandiosas e interessantes, como sempre, Jaylei!! Gratidão, querido! Forte abraço!!