No início da década de 1980 a literatura de ficção científica estava agonizando. A santíssima trindade do Gênero — Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Robert A. Heinlein — já viviam seu ocaso (ainda que algumas obras interessantes fossem ocasionalmente produzidas por eles), e o cinema parecia que engoliria o gênero, com a trilogia de Star Wars e a obra prima Blade Runner dominando o imaginário popular.
Assim como o cansaço da música pop era evidenciado pelas paródias de Weird Al Yancovic, a ficção científica era alvo dos hilários — e ácidos — sarros tirados por Douglas Adams sua série do Mochileiro das Galáxias.
Quer ter uma ideia de como a ficção científica estava fora de compasso? Leia qualquer coisa de Isaac Asimov da época: vai parecer uma paródia de algo escrito na década de 1940, até mesmo com os estereótipos de gênero: o robô masculino vira conselheiro do imperador, enquanto a robô feminina é bibliotecária.
Tudo ia mal, até que em 1984 um jovem canadense porra-louca começou seu livro de estreia com as — hoje, imortais — palavras:
“O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar.”
Sim, quem hoje contempla a tela escura de um canal fora do ar em um televisor 4K OLED não faz ideia do que seja isso, mas quem já encarou o barulho estridente e o caos cinzento de um televisor de tubo sintonizado no nada entende perfeitamente a que tipo de dia o autor se refere. Neuromancer, o romance de estreia de William Gibson — e do gênero Cyberpunk — também se tornou anacrônico em vários aspectos, como essa imagem e várias outras ao longo do livro denotam.
E ainda assim causou uma revolução tão grande na ficção científica quanto o Punk causou no rock, 10 anos antes. O epíteto “Cyberpunk” não é por acaso.
Fundação, a obra máxima de Isaac Asimov é baseado na ascensão e queda do Império Romano; Star Wars é um westerntransposto para “uma galáxia muito distante”, 2001, Uma Odisseia no Espaço discute a superação de limites diante da necessidade de sobrevivência (e essa temática vale tanto para os antropoides do início do filme, quanto para HAL, a caminho de Júpiter). Em todos a tecnologia é incidental, uma ferramenta.
Em Neuromancer, a tecnologia é a personagem central, como o sertão é a personagem central da obra maior de Guimarães Rosa. A tecnologia está em toda parte; nos imiscuímos nela e ela nos penetra. A tecnologia define, cria e destrói o universo criado por Gibson.
A obra é um arauto. Nos liberta dos grilhões em que a ficção científica havia se prendido, arremessando-nos no desconhecido, só para uma fração de segundo depois nos revelar que esse desconhecido é uma parede dolorosamente intransponível.
À época a Industrial Light and Magic, de George Lucas, estava tornando possível o que antes era impensável: efeitos especiais de qualidade, e mesmo o uso de computação gráfica (que ainda engatinhava, mas já produzia efeitos nunca antes sonhados). E ainda assim, Neuromancer era algo difícil até de imaginar, que dirá de filmar. Só quinze anos depois os (então) irmãos Wachowski conseguiriam representar as ideias de imersão tecnológica da obra de Gibson em seu genial Matrix.
“Matrix”, aliás, é um termo criado por Gibson.
Não dá para dimensionar em um artigo despretensioso a importância de Neuromancer. Seu efeito transcendeu — e muito — a ficção científica: a obra moldou nossa forma atual de enxergar o futuro. E por mais que Gibson tenha sido incapaz de visualizar a revolução da telefonia celular, para ficarmos em um exemplo bastante prosaico (os telefones públicos ainda são populares naquele futuro), para quase tudo mais, Neuromancercontinua sendo algo além de nosso alcance.
Há 35 anos o livro parece descrever um futuro 20 anos à frente, sem que essa perspectiva mude. E para comemorar esses 35 anos, a Ace Publishing comissionou essa capa do artista Jon Gray, na foto aí em cima, para uma edição comemorativa. Uma bela imagem para um belíssimo livro. Tanto que entrou na seleta lista dos 100 melhores romances em língua inglesa do século XX, publicada pela revista Time.
A obra vai ser eventualmente ultrapassada pela realidade, obviamente. Contudo, foi e continua sendo revolucionária. E, aposto, será sempre semente para algumas das melhores revoluções na ficção científica dois próximos séculos. A ver.
e eu que nunca acabei de ler este livro. Mas nao leve isso para o lado do desinteresse. Eu tinha o livro emprestado, ficou comigo, eu comecei a ler, depois pegaram de volta e eu fiquei com esta mística misterio de nunca acbar de le-lo. MAravilhoso mesmo assim, e justo nisso, na configuraçao de um mundo novo, um admiravel(?) tecnocyber mundo punk novo